quarta-feira, 15 de novembro de 2017

canção mouca

não haverá música na estrada

o barulho não ecoa mais

o oco que em mim mora

não há música

em minha execução

não há gritos

sequer som


perdeu-se o amor em meio à romaria

todo som de meu silêncio é grito

todo grito que é meu é morto


não ser mais do que esse passo manso

mudez cheia de medos

pisoteando o chão


segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Não há mensagem

Algumas vezes os problemas numa troca não são nenhuma das palavras que um enuncie, às vezes as chances de erro na expressão são relativamente poucas, e muito poderia ser aceito de boa vontade. O problema nessas vezes, e é por isso que baixas os olhos quando te reprimo com os meus olhos teu verbo exagerado, o problema não era teu verbo, mas teu modo de colocar teu verbo sem saber ler o meu. Interpretar-me literal como um produto, um rótulo de pastas de dente, uma caixa de leite. Interpretar-me como um texto de jornal. Reto e objetivo. Ou como se tivesse lendo meu diário, aspirando cada uma das minhas palavras como se fosse eu. Ignorando a sinuosidade a qual sempre clamo. Minhas palavras são e não são eu - não pense que sempre eu diga mais sobre mim do que eu disse. As palavras me são, por ser no que nos constituímos (deves saber já que não somos nada mais que o que dizemos), mas elas não me são de todo, se olhas com olhos concretos e objetivos. Elas na verdade permitem e até se excitam com uma dose de mentira. Posso dizer que sinto pedra e sentir ar. Posso atirar pratos no poema, quebrá-los em caquinhos, mas na vida é em mesmo prato que apoio minhas uvas e meus sonhos e minha decisão, meu rosto de certezas quando eu te digo que não quero que crie certezas sobre mim, porque meu corpo não é feito de palavras e nada do que eu faço é mensagem para ti.

sábado, 11 de novembro de 2017

no punho

minha veia é um rio

escalando a montanha

no dorso da mão

é estranha e azul


afago seu gomo

sua curvatura

é quem me torna

dissonante e turva


e assumindo-a

forço um punho

em meu sonho de nado

de escalada




quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Adendo

........, eu te contamino todo em palavras.

Cada vez mais me afundo nessa abstinência de sentimentos. Cada vez mais inscrevo na pele tudo aquilo que não sinto nem sei sentir. Cada vez mais eu escrevo sobre aquilo que não sei e então me descubro saber cada vez menos. A poeira de cima da mesa, eu não sei, não a compreendo, nem tenho as metáforas necessárias. Posso dizer que equivale ao que sobra dos meus amores, mas é claro que não. Tudo é fingimento e pretensão – não acredite – eu danço por cima das mentiras.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Casas de madeira, a cidade, e o que manda o sangue

O cenário do filme é tão simples que deslumbra. Há uma casa de madeira em meio ao mato, sozinha e escondida. Na platéia, ele suspira os sonhos que guarda. Sussurra para ela tu já morou numa casa de madeira? É quente no verão e fria no inverno. Ela sorri. O cenário é bonito mesmo, viver assim seria bonito, estar com ele. Mas o sangue que desliza no corpo, o sangue não mente dentro dela. Tudo ansia por cidade e movimento. Precisa estar onde está para que o sangue continue a seguir seu rumo. Mas se quer movimento, o que o corpo quer ali, prendendo as mãos em mãos do outro? Se quer prender-se, por que o sangue clama e clama por fluir? O corpo às vezes deseja tudo misturado. O sabor das contradições lhe é mais gostoso.
Ela tem medo. Parece estar de volta nas estradas por onde escapou. O filme é esteticamente bonito, mas às vezes ela se pega sem ouvir as falas, perdendo pedaços do enredo, no pensamento outros filmes. Estar ali é contraprodutivo, mas ela nunca foi uma pessoa prática. Abraça mais o corpo dele, que queima de um desejo e uma saudade. Quentura. Ele é tudo que ela sente de mais estranho, ele era tudo que dava e não dava certo. Ela não entende porque tudo se inquieta e o filme se impacienta, e só o que o corpo deseja é um passo e outro do corpo do outro. O movimento gostoso do corpo do outro. Um beijo mataria mil sedes que tivesse, ao mesmo tempo em que criasse mil sedes mais, a serem mortas na própria saliva. Ela tem medo, veste mais dúvidas. O que a boca anseia não é o que ela sabe e entende. Ela sabe o que o sangue já sabe: não está ali o que busca. Mas no modo como as coxas se apertam, no modo como palpita, ela esquece por um tempo do que havia de buscar.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Sonho

Golfinhos por toda a parte, por baixo e por cima das águas, em um azul onde eu nunca poderia pertencer. Me perdi no sorriso de um, que nem parecia animal – muito menos humano – era todo sensação. E dentro dele eu nadava, era também golfinho, também sabia sorrir. Coberta de água que era salgada mas não eram lágrimas, pensei a minha possibilidade de ser golfinho. Hoje penso que nunca seria, esse eterno colocar em palavras me impede, a racionalidade cronológica me tira do mar, não me deixa mergulhar por mais que eu queira. Era sem eira nem beira esse desejo de ser golfinho e ser livre sem medo de ser a próxima presa, sem necessidade de exibição, apenas a pulsão do momento de pular, a felicidade extrema de saber o salto como objetivo último e ser menos corpóreo e mais dissipado no ar. Mas eu não pensava em nada dessas coisas tristes que questiono agora de fora do mar. Lá dentro, vivendo eu-golfinho só havia o momento de ser e nada mais. Como a paz de uma meditação, molhada de água e desejo seguindo a ação de meus impulsos. Porque obviamente era eu e mais ninguém, e eu era livre, perfeitamente livre naquela pele de animal, em uma energia que do jeito que me envolvia não tinha como não saber que era selvagem. Era um gozo que não tinha absolutamente nada de mim no meio. Era corpo sem fome e sem anseios além de pular e gritar, num átimo de sorriso espalhando nas águas o sangue de minha alegria. E só em falar em sangue eu já sei que volto a ser eu. Como golfinho tudo era sobre água, ar e ser. Agora volto a sangrar. Não há melhor maneira de me saber humana.



terça-feira, 24 de outubro de 2017

poema sobre nuvens

não é ser etérea

pois mesmo a terra

que cresce em meu corpo

tem seus furos por onde

o corpo se esvai


não é voar

pois mesmo que enterre

meus ossos na areia

mesmo que mergulhe

até chegar ao magma

algo em mim sempre paira

um vento que trago 

nas veias


não é algo que só nuvens deem

não é encontrar deus

ou uma metáfora

não busco balões perdidos 

aviões fora do rumo

paisagens suicidas


tudo que procuro

é não me encontrar

tudo que procuro ali

é colidir

no que todos os dias

não sabe ser


domingo, 22 de outubro de 2017

Marina

    Há algo que faz com que minha memória de quando e quando se volte para aquele verão, talvez uma reação à personalidade que tento reprimo mas que me assalta às vezes, talvez uma culpa sem sentido, um medo de quem eu sou. Tento dizer que não dou importância a isso, mas minha memória me desmente, me mostrando o quanto fiz questão de guardar essa lembrança e revisitá-la de tempos em tempos. E escrevendo eu tento entender por que, tanto tempo depois, mesmo com os contornos da história apagados, eu ainda me lembro tão bem da última vez que eu vi Marina. 
    Por uns dias eu pude chamá-la de amiga, e a sensação era boa. Nos conhecemos naquele verão. Todas as atividades fazíamos juntas, as colagens de revistas, as brincadeiras. Não sei o que fazíamos lá, parece uma espécie de creche misturada com colônia de férias, e há uma possibilidade de que fosse algo relacionado à igreja, mas não sei – o catálogo objetivo dos fatos não se guarda nessas lembranças – só sei que havia uma diversidade de crianças e que eu já me sentia inadequada embora ainda não tanto. Lembro que era em outra cidade, que não via sempre meus pais mas eles estavam por lá, que havia uma monitor chamado Brasil, e que lá eu me permiti uma amiga, e era ela.
    Marina era minha dupla oficial, e uma presença serena, me entendia de uma forma que nem todas crianças entendem. Lembro dela como determinada e talvez um pouco mais madura. Andava de mãos dadas comigo e com as crianças menores, de quem gostava de cuidar. Eu não gostava tanto, mas com ela era divertido. Ela era doce e eu, em um primeiro momento, também. Na última apresentação devíamos interpretar diversos tipos de mães, ou de mulheres no geral. Era um teatro para os pais, eu não lembro se fiquei nervosa, não lembro se interpretei direito. Mas lembro de escolhermos os papéis. Ela era a empresária, e eu a dona de casa, o mais distante possível em relação aos meus sonhos. Nunca soube porque escolhi justo esse papel, talvez fosse para viver uma fantasia maior, talvez fosse para brincar com bonecas. Nos apresentamos, todos pais aplaudiram. Eu não sei o que os meus pensaram, nunca perguntei tampouco me interessa. Eu e a Marina éramos um sucesso, brincávamos juntas, passeávamos de mãos dadas pelo pátio e conversávamos na linguagem das crianças, que não sobreviveu à memória. Combinamos várias vezes de nos encontrarmos novamente.
    E então é o último dia. Juntamos os brinquedos que estão espalhados pelo chão, e eu não sei o que se passa na minha cabeça. Todo meu interior nesse momento é uma incógnita para mim ainda, e talvez seja o real motivo para essa memória me restar tão vívida. Eu coloco os brinquedos de volta na caixa, não sei se estou com raiva, se tranquila. Ela vem para perto de mim e oferece ajuda. E, por um momento, eu acho que a odeio. Súbita e sem motivos. Ela sabe. Me encho de espinhos contra a presença dela, e não sei o que digo. Acho que digo que me cansei de estar com ela, que seu modo de falar e brincar comigo é tão chato, que me deixe sozinha, que vá para longe, eu não sei. Mas ela chora, e essa é a primeira vez em que consciente eu faço alguém chorar. Ela chora e não me entende mais, tudo é estranho. Já nessa época eu não me entendo. E eu não sabia dos riscos de perder. Ninguém entende por que fiz lágrimas na menina – nem mesmo eu. Quando os pais dela a levam para o carro, nossa despedida é morta, estranha. Todos os tratos que fizemos se desfazem silenciosamente. Nunca mais vamos nos ver, e até hoje não sei o que houve em mim, o que eu disse à Marina, e principalmente, por que eu cresci e nunca esqueci, o porquê da impressão de que tudo depois disso seguiu um padrão, uma progressão, que se inicia com essa culpa misturada a um quase desejo de ferir.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O que quero

Desânimo. Um dia fui o mais vivo deles até o que era ânimo fugir e me deixar apenas com meu corpo. Eu já não tenho a que atribui-lo se não à própria (não) vontade do corpo. Eu não tenho culpa se meu braço parece que vai se dissolver antes de eu largar a caneta, se minha mão me ordena a parar a escrita, pausando aos poucos, comendo as letras que agora (no segundo agora) conserto ao digitar no computador, ainda com as mãos cansadas mas já não tanto. Eu não tive, e ainda não tenho, culpa do modo como meu corpo vai se morrendo, de não estar a fim de falar com ninguém, de não estar a fim de ficar contigo, de não estar a fim de ler o que me comentas. Tudo o que eu quereria é permanecer na cama por vários dias, a ver se consigo na carne que se inteira recuperar qualquer coisa daquilo que um dia eu fui.

sábado, 14 de outubro de 2017

Plateia

    Quando ele apareceu, eu não sabia sentir. Havia um certo desespero por sentir algo, como se minha mente ficasse nublada em busca das sensações. Ele era um ponto branco em um palco tão distante da minha visão, que percorria uma multidão de cabeças e telas luminosas até chegar ao que devia ser ele, e eu sabia que era, pelo telão que flutuava-o em evidência, guitarra nos braços, cheio de histórias, belo belo. Eu cantava junto a primeira música aos pulos, mas ainda procurando no universo de dentro de mim como em uma espécie de mostruário qual o sentimento a ser sentido. Cavava no fundo de mim porque queria me saber bebendo cada minuto, precisava de algo que não sabia onde estava. Primeiras músicas e eu ainda estava me abstraindo dentro de toda a energia que eu não sabia onde canalizar. Eu voava para longe de mim e ainda assim tentava me fazer significar. Minha mente se perdia tão longe naquele palco, no céu, adiante, e depois me voltava bumerangue. Numa dessas voltas, numa das músicas, eu senti. Talvez justamente de tanto que eu desejei sentir. E ainda assim nada tornaria aquilo menos real. Eu estava bem dentro do meu corpo e da minha respiração, eu era toda a minha imensidão. Ali onde estava. Na minha volta, ninguém fazia sentido - todos faziam seus próprios sentidos, eu fazia o meu.
    Em uns instantes eu consegui captar o doce dos minutos escorrendo dentro de mim; às vezes eu fechava os olhos cantando e estava plenamente dentro do minuto, quase que no domínio do tempo, mesmo que somente de um fragmento. Minha voz me ocupava toda ao acompanhar a música que ele tocava, ninguém podia escutá-la, fundia-se ao som que se externava, mas continuava tão íntima e minha, tão escondida me pertencia. Minha voz invadia discreta a melodia dele e a melodia dele invadia a mim inteira. E esse é o momento em que, mesmo sem que ele perceba, a gente se encontra; e as memórias que ele traz encontram um momento de confluência com as memórias que eu trago. Saboreei num canto do sorriso nossa conexão. Tudo aquilo que ele precisou passar, as escolhas que tomou, as pessoas que conheceu, as inspirações que teve de repente deitado na cama para então se levantar de súbito e escrever, ou tocar; pensei em toda a vida que ele continha naqueles braços tão acostumados às guitarras, nas memórias que talvez viessem junto com as músicas que cantava e só cantava porque um dia se sentou e fez existirem. Tanta memória, tanto passado até que ele chegasse ali naquele dia cantando a si mesmo para milhares de pessoas incluindo – uma gota de uma plateia gigante – eu. 

domingo, 8 de outubro de 2017

casa fechada

peço abrigo ao gelo

se ao abrirmos as portas

erramos o cálculo

ruínas as bombas

na sala de estar


se abrimos a porta

ao vento que entrava

mas veio a sujeira

limpamos o crime

varremos a sala

e pedimos abrigo

a algo finito


se fomos muito quentes

a escancarar a casa

somos quentes ainda

sufocando a mágoa

esse vento irrompido

em janelas ocultas

pedimos abrigo

e não há o que abrigue


o gelo acusa todos acusam

todos acusam queimarmos demais


sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Crimes

Eu quis ser boa, quando me parecia que havia o divino a um passo para o lado e que bastava um sorriso ou uma lágrima para ser de alma purificada. Eu quis ser boa - e colar em um mesmo pacote tudo o que eu considerava do estatuto do bom. Quis passar por ti como um aroma, um cheiro de dálias, discreto e patético, que não venta no rosto de ninguém, não invade os corpos mas paira no ar, e quando se vai embora, vai tão lentamente que o olfato demora a perceber de todo o peso do ponto final em um ar sem cheiros. Eu quis ser, quis me crer boa, falsifiquei uma doçura nessas carnes grosseiras. [Mas dia após dia as culpas essas culpas de tudo em que não me mantive e da pureza que não possuo das virtudes que não posso e esses gestos essas falas esses beijos o retirar de um beijo o retirar das mãos das mãos de outro o rasgo os vãos todo o dia me assalta e eu preciso aceitar o peso dessa farpa que eu trago e que sou e o quanto machuco o quanto eu vou te machucar eu sei que vou te machucar porque tentei tanto e tanto ser boa que não fui]. Eu queria ser tão boa que ninguém duvidasse, todos veriam minhas asas - perderiam de vista as lágrimas que escondi nos rolos de papel higiênico, mas eu seria tão tão boa que nem me importaria com os olhos que não me olham, eu olharia por todos, eu me estenderia embaixo do mundo como um tapete para que pisassem em mim no caminho para algo, felicidade, será, eu me estenderia como um tapete e eu deixaria que tu se deitasse ou se enrolasse em mim. [Mas é tudo duro e esses ossos eu juro que odeio esses ossos repletos de pecados e tutano e eu odeio esses pensamento e essa sempre iminência de ser má de te trair te machucar essa iminência que escondo nas minhas maçãs do rosto que veja bem são tão simpáticas e eu sei que sou mais má e o extremo é esse halo que pretendo essas asas que finjo em mim toda vez que eu não me mostro não querendo te magoar que nesse desespero de não magoar eu acabo magoando todas as pessoas todinhas todinhas que eu conheço essa culpa essa culpa eu queria dizer que desconheço]. Eu queria ser quem talvez acreditem que sou, ou talvez ninguém mais creia, e consigam dar as cores certas aos meus silêncios. [Eu estrago racho as vigas trinco os vidros eu traio as mãos que me abraçam e eu beijo como eu te beijo mentiras eu invento um carinho pelo prazer falso talvez não tão falso de ter carinhos e eu ainda consigo dormir de noite tão bem e eu estaria tão bem tão anestesiada em minha culpa se não fosse por essas viagens ou pelas músicas que me entram no sangue essa consciência essa tristeza de não ter conseguido de ter falhado em te oferecer algo de positivo de não ter em mim de onde tirar para te ofertar me falta todo esse leite para te dar e eu queria esquecer mas não consigo esquecer o quanto eu queria e realmente queria ter sido boa contigo]

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

espelhos

ele queria ver algo

quando lhe olhasse os olhos

ele queria ver dentro do vidro 

do cerne da vista 

a vida dos olhos

e no envoltório

a íris e o corpo

habitados


ele afundaria o espelho

em busca dos olhos

ele buscaria no espelho

alimentar o corpo

de chamas e história

para não se ver

tão pouco morado

que nem os olhos

não olham


terça-feira, 26 de setembro de 2017

Conexão

Uma e doze. Meu rosto junto ao meu entorno são iluminados pela luminária quebrada que se apóia na cama. O resto do quarto se lambe nesse escuro incompleto. Não quero dormir, encontrei mais um monte de músicas tristes em minhas pesquisas. Não quero dormir, e perder essa madrugada. Mesmo que eu acordasse e ainda fosse noite, ela seria outra, mais lúcida e menos viva. Eu quero assim: madrugada de noite cansada. Vou ficar aqui ouvindo essas músicas de vozes suaves e tristes, às vezes diluídas e escondidas na melodia, só de estar aqui tudo é melancolia, e eu a abraço com toda a força de meu sussurro. Há algo que nunca se cura – e nem desejo curar – que encontro nessas noites. As vozes deles não me deixam estar de todo sozinha, mesmo quando estou no mais fundo de mim, de onde mal cabe a escada de volta. Eles me puxam o olhar – quase que esqueci de checar o invisível de novo – há tantos solitários acumulando pó nos sapatos.


sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Escritos de ressaca nos quais sequer acredito

A bebida é a desculpa para se agir verdadeiramente como se quer agir. 
Desconfio de quem bebe porque precisa, são perigosos. 
Prefiro quem bebe porque gosta: hábito menos tirano.
Ninguém precisa de álcool, assim como ninguém precisa de amor, mas ambos funcionam que é uma beleza contra o vazio existencial. 
Só que a bebida às vezes mata o amor. 
E às vezes torna-o mais intenso do que seria no seco.
Injusto é associar bebida à jovialidade, ela, tão envelhecida. 
Não há nada jovem em beber, a diferença é que talvez jovens pareçam mais felizes quando o fazem.
Eles bebem para comemorar algo invisível ou afogar mágoas ínfimas. 
A velhice bebe para esquecer, até mesmo de que é velha. 
Eu só bebi porque parecia bom beber. 
Percebi há muito tempo que a bebida não cura meu vazio, apenas molha. 
Então se bebo é sem solução. 
Gosto da sobriedade geralmente porque nela eu vivo autêntica a minha falta de controle. 
Não aceito ser controlada por nada – amor, bebida, medos – meu descontrole é meu e por mim. 
E se mantém.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

invadir

se eu cavar um abrigo em tua boca

entrar no espaço de um dente

tomar-te o corpo por dentro

ser a tua parasita


em vão tentarás tossir

                          expelir-me

te ocuparei o corpo inteiro

residindo nas feridas

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Por tudo o que não é cristal

Poderia querer me destruir para começar novamente na primeira palavra um enredo que diferisse dessa história de julgamento e egoísmo que vem sendo narrada. Mas então a primeira página seria cheia dos silêncios do que não foi e eu não saberia interpretar. Chegando na metade, estaria enojada. Teria eu construído uma narrativa de princesas e sapatos mágicos? Não assimilei nada das pedras que não haviam nos sapatos, dos vícios que não invadem os sonhos plásticos da princesa. Ainda antes da metade eu teria medo do meu mundo. Já não o tive sem querer? O cristal de uma sapatilha jaz espatifado do último baque. Então eu olharia, ou olhei, para a próxima página sentindo um peso na mão, pruridos de rasgar todas últimas que levaram até ali e largar tudo para construir um próximo castelo de cartas; ou então vou sentar com um livro de recortes em mãos e construir outra história infeliz de julgamentos e egoísmos, para pelo menos ter matéria de dúvida ou de aprendizado antes de me trancar nos palácios de vidro.

sábado, 16 de setembro de 2017

presente

num domingo de manhã

desenharei as nossas formas 

no lençol

o que for sombra, o que suor

servirá de contorno

eu riscarei o entorno

de lápis de cor


que assim nós voltamos

para casa e talvez

haja inverno

e talvez semanas 

sem recordações


mas o sol que entra na janela

vai nos flagrar

dia após dia

num domingo de lençóis

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Planos para a noite

- Já sentiu o gosto da quietude? Amarga mais que esse vinho. Sou todo dia berço de palavra não dita, repleta de verbo até o fígado. A palavra contida, a vida a conter-se nas raízes. No copo, hoje, vou ser explosão de palavra. E nenhum tabu, nenhum sentido vai escapar de meu verbo desesperado. Eu poderia ter dito em qualquer outro momento da vida, mas nesse gostaria que olhassem para os vincos da minha testa a seriedade que coloco no dito e na proposta. Eu cansei do apelo das boias. As boias, eu me agarrava mais e mais a elas e furava-as com as unhas. Não posso mais submeter meu corpo à segurança de manter-me sã. Não admito mais o grito contido que é me manter sã. E sinto muito se isso te ofende e perturba. Sinto muito se me prefere muda. Sinto muito se me coloco cada vez mais perto da morte. Eu preciso sentir a morte no verbo para falar. Minha voz se distila nas feridas. E eu falo cada vez mais, mesmo que use menos palavras, porque vou aos poucos aprendendo o que há de sangue em cada sílaba. E assim, mesmo que não saiba o que estou dizendo - agora não faço a menor ideia do que estou dizendo - tudo aquilo que enuncio é um peso ainda que liberte. Nenhuma palavra é em vão, sinto despencarem de mim todas elas. Me faço pedra para os teus carinhos, e ninguém nota. A palavra é a única que sabe quando estou sendo falsa. A única que sabe o medo que eu sinto de enganar-te. E eu preciso programar o fim desse silêncio. Toda palavra que contive pesa meu papel. No copo, hoje, vou ser verbo desesperado. E tu não vai ouvir, de novo. Tu sabe o que diz o canto de um pássaro?

domingo, 10 de setembro de 2017

Enunciar-te

Eu te pus um feitiço e com isso me afetei. Mascarei encantos no teu nome no momento em que o citei. Se lhe criei, foi pelos versos. Eu te coloquei feitiço porque te fiz palavra e foi palavra dita. Rabisquei teu nome num papel e nisso ele ficou mais meu, mais perto, e nunca mais vai se desvincular posto que escrito. Tua existência se subordinou no momento exato da caneta. Te alegra que eu não escrevi – nem vou escrever – de amor, pois então seria algema. Me contento no feitiço. O teu nome virou meu e nos abraçamos em verbo infindo.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

compromisso

duas décadas e pouco
e ainda não aprendi
a não prender minhas mãos
nas mãos de outro.

já dispensei grade algema aliança
amaldiçoei a marca das cordas
e mesmo assim me colo só
com gozo baba lágrima
essas mãos crucificadas

imóveis os dedos
grudados ao suor
da palma de outro
tão trancados
que se os arranco
em um átimo
rasga a pele tudo rasga
e se perde em pedaços

quando desarranjo os nós
não sobra mais que esses rasgos
sobre as mãos dele intactas
a culpar as minhas mãos.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Das razões de paralisar a escrita e das razões de seu retorno

Eu não sei escrever nada daquilo que queria escrever. Parece que minha boca se fechou, os dedos estão duros, como se o tato tomasse a derradeira consciência de tudo aquilo que não sei. Houve uma voz um dia – era reprimida, mas era uma voz – agora se move estranha por essas linhas. Tudo muito falso. Em verdade, nem sei se subsiste ainda. Anda torta e em fragmentos. Eu não sei o que faço com essa compulsão por escrever quando o conteúdo me lacuna. Não adianta encher as páginas de uma sílaba ou uma palavra só. Não adianta escrever Vontade Vontade Vontade até o fim desse caderno. O que meu corpo deseja é a mágica das palavras se encadeando umas nas outras em comboio. A vaidade fracassada de ter frases só minhas. Mas essa caneta rabisca sem roteiro e sem sentido, não vai sair mais nada daqui. Nem sei por que persisto. Olho para o caderno e dá uma dor – sei que não há mais o que dizer – sei que não sei dizer – sei, e admito isso com relutância, que talvez eu nem precise dizer, e essa necessidade que me imponho pode até ser falsa – mas eu não consigo, não consigo não dizer tudo isso que nem sei dizer.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

De propósito

Não há motivos para além dos motivos que crio. 
As calças apertam nas coxas, o arroz está queimado, há uma mancha de tinta na poltrona. E eu direi decidida sobre o quanto é o destino, sobre os astros, sobre o fato de que júpiter entrou em tal estado astral. E que é por isso, e que veio do mundo esse azar constitutivo. Poderia dizer que essa comida de gosto queimado é uma tentativa da vida a torturar meu paladar. Mas a verdade é que o mundo é consideravelmente menos dramático. O caos se ordena sem calcular os milímetros de atraso entre ser atropelado, ser atingido pela água de uma poça, ou continuar o dia incólume. O mundo não está tentando o caminho da desgraça. Eu só trilho nas migalhas que eu mesma deixei antes para me guiar, e cada migalha é um medo.
As coisas são muito mais frias que eu, que tanto teimo em desviar os olhos e fingir não ter visto. Embora pareça que me agradam as ruínas, não. Porque é tudo tão forçado nessa tentativa de não forçar nada. Tudo tão recalcado na tentativa de não recalcar. Parece que falo o tempo todo de meus sentimentos sem nunca falar de fato. Deposito meus restos em cada caderno e mesmo assim parece que sobram sempre tantos restos em mim. O resto da ferida retirada leva a mais feridas inflamadas e eu não consigo elaborar. Dá medo viver se cada dor de estômago for uma dor a mais na memória. E então eu temo cada pessoa que amei, cada rejeição, cada frustração, toda dor que senti, os erros que cometi, os atos falhos, as vergonhas, as comidas ruins, porque tudo está em mim. Cada dor é um mundo e eu vou sendo todas elas, de propósito, performaticamente.

sábado, 22 de julho de 2017

Criação

Ele não disse a ela sobre os textos que escrevia. Não diria. Convenceu-se de que era preciso um contato maior para que pudesse inserir os seus segredos no convívio, mas não era. Quanto mais próximos, mais trancas na gaveta, mais medos de descoberta. Ela tinha um sorriso de margarida, mas ele nunca conseguiu explicar para ela o que isso significava. Ela se movimentava como um animal exótico a se habitar ao ambiente, e de novo ele só dava de ombros se ela lhe pedia um sentido das metáforas. Ele sabia, apenas para ele mesmo, que significava que ela não toleraria as descobertas. E ele não suportaria o dia em que ela lhe olhasse de olhos menos quentes, de uma surpresa fria, desapontados.
Ele nunca diria a ela dos textos que escrevia, pois ela não iria entender ou aceitar, ela sairia pela porta e depois nunca mais. Adeus aos novos móveis e às louças, adeus à alegria das linhas. Custaria fazê-la entender que o mundo era mais que aquele sonho provinciano. Ela balançava os cabelos em frente às janelas e vestia saias jeans, ela tinha a audácia de cultivar flores, e, num dia atipicamente feliz ou triste, inclusive conversava com elas.
Mas as flores não diriam, e ele também não, sobre o modo como tudo aquilo se dispunha nas linhas da máquina de escrever, onde os sorrisos dela podiam lembrar margaridas sem problemas de sentido. Ele não suportaria o momento de vê-la sair pela porta e procurar a rua, onde não haveria rua, e perceber que não há mais nada além de onde os dois estão, e que seus passos, que gostam tanto de correr, estão para sempre restritos à entrada de casa.
Ele precisava esboçar o ponto final antes de dizer a ela, e então a fecharia no livro e nunca mais abriria, nem mesmo para autografar, muito menos para ler um trecho para leitores que se apaixonassem por personagem tão vívida.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Liquefação

Não vou dizer a ninguém que acabei por me subjugar à presença dele. Todos os meus esforços de soltar-me eram apenas a mobilidade permitida das correntes. Depois de todo a batalha em desfazer-me, resto ainda inteira, os pés e as mãos devidamente amarrados às palavras dele. Todas as minhas negativas e meus rompantes são apenas provas por que passo enquanto aumento os níveis da prisão. Submerjo em celas cada vez menores. No momento já me encontro na solitária. Cada cela vai diminuindo até sobrar o poço em que caio para uma menor e mais escura. Não vejo mais poço na cela atual, não vejo nada, eu e minhas correntes grudadas no chão de um túmulo.
Para afundar só há a terra. Com um sorriso no rosto, com uma risada de loucura, com esse desespero, eu volto ao ventre, eu me consumo. A terra vira só terra sem mim antes mesmo de eu dar o ponto final para esse texto

domingo, 16 de julho de 2017

após a dissolução

de concreto
só as unhas

ainda perguntarei a elas:
- quanto tempo até o corpo
esfarinhar?

- como paro o grito
dos grilos
de dentro de mim?

- acima do céu 
está aquele outro 
céu?

- o que é o bem?

- o quanto sou boa
se sou humana?

- quando o corpo esfarinhar
restarão os grilos?

- se os grilos gritarem
serão eles maus?

- se são maus,
por que são maus?

- existe um céu 
acima do céu
para os grilos
do corpo?

- é melhor ser unha
que ser alma
quando o resto é oco?

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Convite

Vou levar meu coração até as bordas do mundo. Vou chegar ao ponto de não saber mais o que é coração, o que é oceano, quem sou continente, de que país é feita a minha pele. Vou perder meus documentos ao mergulhar no rio mais distante e, purificada e não-identificada, vou percorrer as distâncias, me deixando aos poucos pelo caminho, levando o caminho no corpo. Serei nômade até as unhas, esquecerei de um dia ter sido terrena, vou vestir minha falta de raízes, vou bordar um casaco com minha pele exposta às intempéries. Estou levando meu barco pelos rios, sempre distantes, não apenas de mim mas do sonho, os sonhos sempre tão distantes, mas os rios mais ainda, na dobra da dobra do mundo.
Não digo, nunca te direi, que vou criar rodas em minhas pernas fracas e correrei o mundo, veloz como se só passeasse o vento, arranhando o pó da estrada. Não vou voar o mundo em oitenta dias - não me espere de volta no final das férias. Não vou cruzar o mundo em oitenta dias, porque não tenho só oitenta dias. Não quero me perder em velocidades, resisto a cruzar os braços e amiudar o passo. Não tenho só 80 dias e, se tiver, vivo como se 800. Vou viajar o mundo em oito mil dias. Mais oito mil e eu volto para a casa. Talvez até dê tempo de morrer aqui. Vou viajar em oito vezes oito mil como se tudo fosse um texto bíblico e eu mudasse o típico sete para me abranger no oito infinito. Não criarei rodas para partir, vou com meus pés. Os pés descalços, sentindo o barro, o cimento, a grama e as poças de onde eu passar.
E se te digo isso, é porque peço duas coisas. A primeira, já se resolve no teu silêncio, que não me peças para ficar. A segunda:
Vem.
Vamos subir nos barcos e nos abrigar somente às portas dos arco-íris. Nosso teto vai ser só a galáxia, os universos múltiplos que não enxergamos. E se experimentarmos algo que nos deixe altos, altos, altos, não há o menor perigo de esbarrarmos no teto. Vamos nos espichando e nunca vamos acabar de flutuar. Só te peço, por favor, que não mantenha os pés no chão. As paredes da casa seremos nós. A única biblia nessa nação vão ser os versos que vamos ler nos muros ou nos livros soltos no caminho, e os versos que vamos escrever quando sozinhos ou gritar quando num grupo que entenda enfim o nosso verbo estrangeiro. Vamos pisar o mundo, mas não pisar no mundo de botinas como os homens fazem, com seus calçados engraxados em lama e sangue. Vamos pisar como se pisam as uvas, com afeto e pés descalços, e depois mergulharemos no vinho, no suco, no sumo que se forma.
Vem comigo e não diz do quanto sou menina e idealista, não diz da minha impossibilidade de vida prática, não me mergulha nos teus papéis. Vamos rasgar os papéis e tatuar o que tínhamos a dizer. Me encontra à meia-noite no meu barco. Já está aberto o nosso abrigo em arco-íris, vamos flutuar em rios de vinho.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Reflexões em avião

A suavidade fria do aeroporto contrasta com o abafado da rodoviária. A manhã que nem iniciou inibe a presença ruidosa. Cada par ou grupo debate baixo entre si, mas o silêncio seria de igreja se não houvesse a TV a batucar. A televisão parece feita para quebrar os silêncios. Os passos chegam antes das pessoas. Seus rostos são sucintos, demonstram serem neutros. Os lábios mortos de quem não se excita. Uma atividade mais rotineira que viagens distantes e menos confortável que voltar para a casa. Mas é só impressão. Seus olhos não dizem das terras que testemunharão. Cada expressão toma um pouco do ambiente e se adéqua. Pela noite tudo ainda é morto, as cadeiras e as malas pálidas . Mas daqui a pouco amanhece. Lá fora está o avião. Acima das nuvens acho que nenhum olhar é morto, nenhum lábio se fecha a não ser por medo. Há algo mais importante do que ser humano quando se voa.
Pés trancafiados em sandálias. Na TV, o carnaval. Em nós, a atitude voyeurística de olhar o carnaval, a alegria alheia em uma pista que não é a sua. O problema do carnaval da globo é que é tão global. Metade das pernas nuas desafia as saias que cobrem as demais. O chão é de lajotas com estampas manchadas que guardam uma assimetria assustadora. A vida está passando e não consigo escrever tão rápido assim.
A precisão cirúrgica do avião contrastando com as nuvens é o humano-matemático em contato com o etéreo. Se há um céu maiúsculo, esse avião está lá. O mar de nuvens emaranhadas se apresenta como um gigante campo de algodão. Elas parecem não existir quando se está dentro delas. Só existem para as distâncias. Essa é a tristeza de ser nuvem. Mas se existisse um deus em um Céu, seria lá onde ele pisaria. Talvez seja melhor para as nuvens crer em deus. As nuvens são os primeiros professores.
Os desconhecidos do avião são mais desconhecidos que os das ruas – seu anonimato está palpável, as polpas dos braços se encostam, a cabeça sempre periga rolar.
Do alto da noite todo o chão da paisagem é feito de jóia. Ouro derretido por sobre uma extensão de nadas. As luzes salvam os olhos de enxergarem o vazio. Todos os lugares lá embaixo brilham vidas que dormem e refletem os olhos daqueles que espiam na janela do avião.
A voragem de se agarrar à vida-bóia. O oceano ébrio não se dimensionaliza. O olho no furacão que se forma à revelia. Só há a pequena bóia e eu luto como se apenas boiar fosse vergonha. As unhas, os dentes, os olhos cravados, tudo focado na bóia-vida vida-bóia. Arranho-a no desespero por ela, que ela não é bastante para que eu não desmanche. Me afogo pelo desespero de não me afogar. Ansio, esmago-a, afundo na emergência de não afundar. Os olhos domados pela luz. Os olhos órfãos nas trevas. Os olhos em luz e trevas são órfãos e domados simultaneamente. A noite acende as velas para o contraste que a manhã não tem.
O que mais falta no avião é o vento batendo na cara.
O pior meio de transporte do mundo é o que está parado.
O sono enfim vence as minhas palavras;

quarta-feira, 21 de junho de 2017

escuridão

diariamente

anoiteço minha vida

e nenhum posto

de nenhuma rua

ousaria luzes

neste breu

desci noite quase

sem lua na cidade

tão fechado 

meu tempo

que me comprimo

e me extremo

até a estrada

amanhecer


sábado, 17 de junho de 2017

Bloqueio

Quando a escrita se enferruja, a vista entristece e se modela em rotina. A escrita se oxida de medos. Se não for boa o suficiente será inferno, será pseudo, será kitsch, e pensar em poesia boa atrapalha a escrita. Todo tormento se revelará vão até perder o medo que se cria às vezes do confronto com os medos. Não importa a quantidade de coisas que eu ler ou planejar, parece que minha escrita não sairá da mente, mas das artérias.  

quinta-feira, 15 de junho de 2017

aquarela

o sol que mastiga o banco

avança sinfônico

lava ao redor a grama

em gema e sombra

e escala a madeira

como se bastasse


o sol despe aos poucos

da morte meu corpo 

matiza pés coxas unhas

enegrece e me arremessa

amarela ao mundo


quarta-feira, 14 de junho de 2017

Reversiva

Nos bancos azuis do ônibus sentavam rostos nossos e de outros, os pés quase se tocando, mas eu tão somente olhei para a janela e não vi assentos nem pés e evitei todas as faces principalmente do que causou o movimento de não olhar as faces. Sentada à janela do banco reversivo – o que encara e se coloca no alvo do encaro do resto do ônibus – aquele que deixa as pessoas tontas de ver a paisagem ao revés – dei graças a deus havia uma janela onde meu olhar se sumisse. Porque ele estava posto na minha frente, como um objeto de decoração a ser reparado depois de alguns minutos de feliz distração. Como um monstro que aparecesse numa tela, uma TV, um espelho, ele no meu olhar reversivo batendo na retina com mil estilhaços, com o arrepio e o menear dos meus braços e pernas e rostos todos se virando para o lado, escondendo-se na paisagem que corria ao contrário, que pra ele corria certa se ele olhasse a paisagem ou olhasse nos meus olhos o reflexo da paisagem que eu nem via. Mas se olhou, eu não vi. Nas fronteiras dos olhos ele parecia sublime e quis olhar de frente para desconstruí-lo e quis olhar de frente para enfeia-lo mas eu era fraca e não conseguiria, mas eu era fraca e não esqueceria a fisionomia de mágoa em que ele se transmuta, e eu tenho medo do tanto de mim mesma que enxergo e temo cair no meu abismo se olhar para frente para sempre e ele se grudar na minha retina e eu nunca conseguir mais remover nem com demaquilante nem com desinfetante e ficar a imagem dele de touca – primeira vez que o via de touca – para sempre me doendo bem como outras tantas cujos estilhaços eu já guardo, é um perigo, ônibus são um perigo, principalmente os bancos reversivos de se enxergar o contrário da paisagem e o universo do transporte como uma TV ligada num programa sem graça e triste como ver ele e saber não tê-lo e saber não querer querer tê-lo e ter medo de mergulhar tanto em mim que me descubra, sinto que preciso descer na próxima parada, senão eu olho, senão eu olho, senão eu morro, e é só um botão vermelho que periga acabar com meu perigo e eu queria? Sairia do ônibus na parada mais desconhecida dos rostos mais feios grotescos desconhecidos e numa lixeira vazia eu vomitaria toda minha mágoa todo meu enjoo da abordagem reversiva.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

fim de tarde

uma assembleia de vozes

bafeja nos copos

discutindo o mundo

em cadeiras de praia


por entre os dedos

o mundo anota

o que não entenderam


domingo, 4 de junho de 2017

Estupor

Pouco importa se teu corpo espinha enquanto te mantém aí sentado, e todos teus cabelos se ouriçam, e toda pinta da tua pele se avermelha no contato com o ar. Tu mastiga tua angústia com raiva e, embora possua a delicada e mórbida textura da neve, o gosto que te fica na boca é quente e amargo. Pouco importa se tuas pernas cruzadas se colocam uma por sobre a outra e tu se paralisa, as costas grudadas nas costas da cadeira. Não importa: se teu choro sair, se teu choro for vivo, se teu choro manchar o banco, toma aqui o pano e seque a superfície. Olhares enviesados para a tua paralisia, há tantos outros para ocupar o mesmo banco. É injusta tua falta de flexibilidade. Não se move porque não quer, não anda porque teima em restar. Tu não vai mudar nunca e as cadeiras vão ser insuficientes para o teu desespero. Tu falhou no objetivo da vida, tu não foi o que esperavam as mãos nas tuas costas, tu ocupa os bancos de lágrima como se tivesse direito aos bancos. Nossas bocas passam julgando teu desânimo, nos esquecemos de quantos remédios andamos nós também tomando para nos mover dos bancos e deixá-los secos e plácidos.

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Davi

          Não posso abrir esse livro, eu disse a ele. Não vou suportar virar-lhe as páginas, fingir que não vi cada uma das ilustrações que mesmo percebendo de relance, mesmo nem olhando para elas, consigo reconstituir com exatidão. Tenho medo dos rostos das imagens e daquilo que elas lembram. Já basta o que eu não consigo esquecer. O texto – eu não precisaria mesmo abrir uma página sequer desse livro – o texto eu sei de cor, é como se estivesse gravado em mim. E me pego de madrugada ou então durante o banho recitando sem querer, como quem imagina diálogos, como quem planeja discursos, eu trago inteiro o livro e apresento ao quarto, ao banheiro. Não pensa que eu queira, pus fogo ao meu exemplar. Mas ele está todo em mim, incrustado, tatuado. Então não me peça para abrir o livro, como se olhar de novo as imagens ou esse texto fosse me fazer purgar os meus traumas, fosse me libertar. Ninguém sabe o que aconteceria, eu não quero saber, se abrisse o livro, eu não quero saber.
          Só Davi saberia. Porque ele sempre sabia de tudo, e da maneira mais inocente. Ás vezes, após ler o livro e ver que ele ainda não dormira, eu pedia-lhe conselhos. Tolamente, eu sei que parece. Eu falava de um e outro problema – eu sempre tenho um novo problema – e pedia que ele me dissesse o que fazer. Ele dava soluções óbvias e disparatadas, mas tão boas de ouvir, como se todos os conflitos fossem fáceis e nada nunca pudesse me impedir aquele sorriso de estar lendo a Davi no fim da noite. Eu interpretava suas ideias como um oráculo, como se mesmo não fazendo sentido à princípio, tivessem algum significado profundo para mim. Acho que ele teria sido um sábio. Eu, que nunca tive vocação para a sabedoria, me contentaria em ser a mãe do sábio.
          E nem isso. Por meses tentei descobrir o porquê desse livro. Se era algo na história, nas ilustrações, se havia em uma frase um sentido que eu não captasse, porque após passarmos por esse, sempre voltávamos a esse. Alternávamos com outros, mas esse sempre estava ali na estante, para as noites mais frias ou os problemas mais insolúveis. Às vezes ele dormia na metade da história, mas eu sempre ia até o fim. As madrugadas de casa se acostumaram ao som da minha voz. Eu lia um pouco para ele, um pouco para mim, observando-o dormir, os crespos caindo por cima do rosto, a boca aberta. Ele dormia calmo, mas espichado, como se estivesse se oferecendo por inteiro à cama, ao sono. E eu continuava lendo até chegar ao derradeiro ponto. Desligava a luz, dava-lhe um beijo e saía, a minha voz ainda ecoando.
          Depois ainda procurei no livro o mesmo sentimento, mas não houve. E meus problemas também foram se acumulando, não havia oráculos. Agora ele me oferece esse livro, quer que eu o abra e leia nessas noites em que não consigo dormir. Quer que eu me confronte com minhas dores. Mas não adianta, é sempre uma dor diferente. Mantenho na casa tudo igual e à noite me abraço às minhas perdas. Ele me diz que estou afundando, e talvez sim, mas não há Davi que ajude. Então me resto na cama, espichada, e me ofereço ao sono.