sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Corpo de chuva

Um leve movimento de suas pernas definia o tempo. O esboço do passo para fora da porta já criava no céu a primeira gota, imperceptível, como se caísse a tarraxa de um brinco. A própria intenção do passo às vezes era capaz de gerar a ventania. Roupas se alongando no varal. Dois passos fora do batente, ela chovia tudo em volta.
Presa no quarto, o mundo era uma calmaria. O sol lhe invadia a janela e chamava o corpo. No pátio da casa, uma grama florescida, de maciez sinestésica, convite a ansiosos pés descalços. O céu se abria como um sorriso. Ela largava o brinquedo e ia na ponta dos pés até a porta dos fundos. Hesitava. Incertezas ainda não geram ventanias. Não via prenúncio algum.
Mas se um pé ultrapassasse a soleira da porta da cozinha, ela sempre sentia. Sintoma após sintoma, a fúria fermentando o vento, o sorriso vespertino se fechando, o primeiro rugido ao longe, tons progressivamente mais sombrios matizando a paisagem.
Com o corpo todo fora de casa, a chuva já se empunhava nos telhados, barulho das águas como pedras tiritando sobre o teto, pessoas correndo surpreendidas pela rua, um primeiro par de guarda-chuvas prevenidos. Seus cachos desmaiados sobre o rosto.
Ela regula suas saídas. Tentou distintas simpatias para que os braços pudessem se estender para fora da casa sem que se ouvisse imediatamente os raios. Nada funciona, mais ela chove na terra.
Criou uma curiosidade amorosa. Ama o sol, e definha no quarto para que possa assistir pela janela a um dia de grama seca. Nunca conheceu o mar, sequer soube água para além das que criava. Na rua, acaba sempre só. Culpando as próprias mãos, molhando e carregando a solidão para um canto do jardim de águas.
Transformou-se em chuva particular. Vai sumindo, sumindo, até ser do tamanhinho de uma gota. Os olhos na janela, imaginando os pés roçando uma grama seca que faz cócegas. Talvez assim, se saísse porta afora, fosse apenas chuva de verão.