domingo, 22 de julho de 2018

Sobrevivência

    Não preciso sequer do verde a preencher as lacunas da visão. A cidade passa nas bordas, túnel aberto, acalanto em movimento. Podem ser prédios pixados, muros com cartazes de shows do mês passado, lixeiras transbordando abelhas, até mesmo o cinza e as sujeiras. O que vai ao lado das rodas pode ser feio, assustar as lentes de certas câmeras, e ainda assim mantenho as retinas grudadas no lado de fora. A dissolução de pessoas em outras, de ruas noutras ruas, metamorfoses na próxima esquina. Tudo será meu respiro: parte da mesma oração.
    Em nada mais me engajo, nem poderia. A viagem está à flor de minha pele. Nem pegar o livro eu consigo. Para os outros eu digo, é a náusea, é o sono, é o risco de descolamento das retinas. Mas somente não consigo. A paisagem convida toda a leitura que eu poderia dar. E se abro um livro, parece que perco outro, sem planos e instável. Tenho medo de virar para o outro lado e desperdiçar germinações. O fôlego da estrada me abre ao dia, verdejo em amor. Só pelo ônibus que eu sobrevivo, só pela hora de ser minha. Se soubesse meditar, talvez não precisasse. Mas a viagem é minha meditação. Só por ela é que esse ano ainda não morro. Não abro o livro, não escrevo, não converso. Olho, mesmo sem saber o quê, e me perco no meu forro.

sábado, 21 de julho de 2018

Nossos trens



Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
(Hilda Hilst. Do desejo)

Quando eu te contar que um trem passou por cima de teus pés, desacreditarás. Não sentiste a pressão nos dedos, desconheces essa dor, enxergas os pés inteiros, eles, que ainda percorrem os mesmos caminhos. Se eu dissesse que um trem passou em cima do teu pé, ririas. Se eu dissesse tantas coisas improváveis, ririas. Ou apertarias os olhos. Mas os pés ainda continuariam inteiros, os ossos em seus devidos espaços, preenchendo a função determinada pela biologia. Não verias trem que te desabalasse da ânsia de andar. Se eu dissesse que alguns trens são invisíveis, acharias ridícula essa minha mania de teoria absurda indo do nada a chegar no nada. Mas eu ainda veria os trens como um espectro por sobre tua caminhada. E deixaria, após tuas queixas, de alertar. Eu baixaria o olhar para o modo como os joelhos dobram, eu atentaria o olhar para os trens que invadem meu colo.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Trovão

Afundo na cadeira até encontrar a essência da madeira e dos ferros e cair feito uma pulga. Me dobro até tornar-me um mesmo ponto, bidimensional. Presença plácida diminuta. A voz dele continua tentando me atingir como um trovão que explode nas beiradas. Vai continuar percorrendo o caminho decibélica. Eu vou estar pulga para sempre. O trovão tão alto que indefinível, tão alto que esqueço que existe, como aquele barulho eterno do universo que dizem ouvirmos desde o início. Não escuto mais. Sob a voz dele a noz do universo se quebra, mas quanto mais eu diminuo, menos distinta ela fica. Se o mundo se parte, caí nas frestas. Uma formiga diz bem mais. Vejo-a comprida como um cavalo em formato embolotado, não me olha, poderia me levar adiante na ânsia do progresso. É uma figura esquisita, mas lógica. Não escuta o trovão porque tem sentido. Eu não escuto porque estou fugindo. Quando ela se vai, estou sozinha dentro da cadeira. Quase fundida no universo das coisas diminutas. Estarei invisível para quem mirar essa cadeira vazia.
A cadeira não está vazia.
Eu juro. Algo existe.
De perto, a madeira tem um cheiro fortíssimo, me asfixia aos poucos, e tem farpas como lanças capazes de me assassinar. Estou farta de andar pela superfície que só de perto se nota irregular e perigosa. Cansei de tanto cismar no terreno do invisível. Eu me deito à sombra de uma farpa e vou sumindo, vou sumindo ao som do trovão que não termina.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Em cima

A casa da árvore é o topo dessa solidão. Entro nos sótãos de mim mesma: é como uma meditação sem o intento de o ser. A maneira mais particular de ser planta. Deito no chão de madeira, pelas frestas vejo por debaixo do meu corpo, coisa que apenas os chãos aéreos permitem. Gosto daqui. O vento gela a pele estriada. Como se minha carne fosse acrescida de suas qualidades de carne, ou não houvesse mais pele que a revestisse, e mesmo minha própria pele fosse formada da carne mais vermelha, sensível ao mundo.
Sou toda um ovo aberto.
Lânguida sob o vento, redescubro o corpo que esquecia ter.
Há um sol.
Ele se põe em mim entrecortado, em ondas de vento, seguindo o formato das folhas que lhe interceptam reflexos. Tem algo de aquático no seu chamado. Esse sol oscilante age como se refratado pelas águas de uma lagoa, segue um ritmo que é de outras praias. Todos os elementos estão aqui comigo, mesmo os que não estão. É o mais profundo de minha meditação. No seu ritmo de águas, como se admitisse um novo instrumento em sua orquestra, o sol perde sua intensidade geralmente escancarada. Adquire o caráter de sol meu, os raios se espalhando pelos detalhes de mim. Não há mais obscenidades, não é uma mão espalmada a abarcar meu corpo. Os dedos molhados do sol são macios por cima das coxas. Ternura. Minha maior casa é casa de vento. Espichando meu pescoço para trás de mim, vejo enviesados pássaros.