sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Crimes

Eu quis ser boa, quando me parecia que havia o divino a um passo para o lado e que bastava um sorriso ou uma lágrima para ser de alma purificada. Eu quis ser boa - e colar em um mesmo pacote tudo o que eu considerava do estatuto do bom. Quis passar por ti como um aroma, um cheiro de dálias, discreto e patético, que não venta no rosto de ninguém, não invade os corpos mas paira no ar, e quando se vai embora, vai tão lentamente que o olfato demora a perceber de todo o peso do ponto final em um ar sem cheiros. Eu quis ser, quis me crer boa, falsifiquei uma doçura nessas carnes grosseiras. [Mas dia após dia as culpas essas culpas de tudo em que não me mantive e da pureza que não possuo das virtudes que não posso e esses gestos essas falas esses beijos o retirar de um beijo o retirar das mãos das mãos de outro o rasgo os vãos todo o dia me assalta e eu preciso aceitar o peso dessa farpa que eu trago e que sou e o quanto machuco o quanto eu vou te machucar eu sei que vou te machucar porque tentei tanto e tanto ser boa que não fui]. Eu queria ser tão boa que ninguém duvidasse, todos veriam minhas asas - perderiam de vista as lágrimas que escondi nos rolos de papel higiênico, mas eu seria tão tão boa que nem me importaria com os olhos que não me olham, eu olharia por todos, eu me estenderia embaixo do mundo como um tapete para que pisassem em mim no caminho para algo, felicidade, será, eu me estenderia como um tapete e eu deixaria que tu se deitasse ou se enrolasse em mim. [Mas é tudo duro e esses ossos eu juro que odeio esses ossos repletos de pecados e tutano e eu odeio esses pensamento e essa sempre iminência de ser má de te trair te machucar essa iminência que escondo nas minhas maçãs do rosto que veja bem são tão simpáticas e eu sei que sou mais má e o extremo é esse halo que pretendo essas asas que finjo em mim toda vez que eu não me mostro não querendo te magoar que nesse desespero de não magoar eu acabo magoando todas as pessoas todinhas todinhas que eu conheço essa culpa essa culpa eu queria dizer que desconheço]. Eu queria ser quem talvez acreditem que sou, ou talvez ninguém mais creia, e consigam dar as cores certas aos meus silêncios. [Eu estrago racho as vigas trinco os vidros eu traio as mãos que me abraçam e eu beijo como eu te beijo mentiras eu invento um carinho pelo prazer falso talvez não tão falso de ter carinhos e eu ainda consigo dormir de noite tão bem e eu estaria tão bem tão anestesiada em minha culpa se não fosse por essas viagens ou pelas músicas que me entram no sangue essa consciência essa tristeza de não ter conseguido de ter falhado em te oferecer algo de positivo de não ter em mim de onde tirar para te ofertar me falta todo esse leite para te dar e eu queria esquecer mas não consigo esquecer o quanto eu queria e realmente queria ter sido boa contigo]

Um comentário:

  1. Teu nome é medo. E a ciência em tua poesia é cheia de dó, ré, mi, fá e sol de vez em quando. Acredito que tu desenvolve mundos nessa conexão de tudo, porque teus versos são fortes como a humanidade.
    Eu gosto da tua poesia, não me interessa gostar de ti, mas eu gosto do que tu é, quando escreve.
    Bom fim de semana.

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