sábado, 22 de julho de 2017

Criação

Ele não disse a ela sobre os textos que escrevia. Não diria. Convenceu-se de que era preciso um contato maior para que pudesse inserir os seus segredos no convívio, mas não era. Quanto mais próximos, mais trancas na gaveta, mais medos de descoberta. Ela tinha um sorriso de margarida, mas ele nunca conseguiu explicar para ela o que isso significava. Ela se movimentava como um animal exótico a se habitar ao ambiente, e de novo ele só dava de ombros se ela lhe pedia um sentido das metáforas. Ele sabia, apenas para ele mesmo, que significava que ela não toleraria as descobertas. E ele não suportaria o dia em que ela lhe olhasse de olhos menos quentes, de uma surpresa fria, desapontados.
Ele nunca diria a ela dos textos que escrevia, pois ela não iria entender ou aceitar, ela sairia pela porta e depois nunca mais. Adeus aos novos móveis e às louças, adeus à alegria das linhas. Custaria fazê-la entender que o mundo era mais que aquele sonho provinciano. Ela balançava os cabelos em frente às janelas e vestia saias jeans, ela tinha a audácia de cultivar flores, e, num dia atipicamente feliz ou triste, inclusive conversava com elas.
Mas as flores não diriam, e ele também não, sobre o modo como tudo aquilo se dispunha nas linhas da máquina de escrever, onde os sorrisos dela podiam lembrar margaridas sem problemas de sentido. Ele não suportaria o momento de vê-la sair pela porta e procurar a rua, onde não haveria rua, e perceber que não há mais nada além de onde os dois estão, e que seus passos, que gostam tanto de correr, estão para sempre restritos à entrada de casa.
Ele precisava esboçar o ponto final antes de dizer a ela, e então a fecharia no livro e nunca mais abriria, nem mesmo para autografar, muito menos para ler um trecho para leitores que se apaixonassem por personagem tão vívida.

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