sexta-feira, 14 de julho de 2017

Convite

Vou levar meu coração até as bordas do mundo. Vou chegar ao ponto de não saber mais o que é coração, o que é oceano, quem sou continente, de que país é feita a minha pele. Vou perder meus documentos ao mergulhar no rio mais distante e, purificada e não-identificada, vou percorrer as distâncias, me deixando aos poucos pelo caminho, levando o caminho no corpo. Serei nômade até as unhas, esquecerei de um dia ter sido terrena, vou vestir minha falta de raízes, vou bordar um casaco com minha pele exposta às intempéries. Estou levando meu barco pelos rios, sempre distantes, não apenas de mim mas do sonho, os sonhos sempre tão distantes, mas os rios mais ainda, na dobra da dobra do mundo.
Não digo, nunca te direi, que vou criar rodas em minhas pernas fracas e correrei o mundo, veloz como se só passeasse o vento, arranhando o pó da estrada. Não vou voar o mundo em oitenta dias - não me espere de volta no final das férias. Não vou cruzar o mundo em oitenta dias, porque não tenho só oitenta dias. Não quero me perder em velocidades, resisto a cruzar os braços e amiudar o passo. Não tenho só 80 dias e, se tiver, vivo como se 800. Vou viajar o mundo em oito mil dias. Mais oito mil e eu volto para a casa. Talvez até dê tempo de morrer aqui. Vou viajar em oito vezes oito mil como se tudo fosse um texto bíblico e eu mudasse o típico sete para me abranger no oito infinito. Não criarei rodas para partir, vou com meus pés. Os pés descalços, sentindo o barro, o cimento, a grama e as poças de onde eu passar.
E se te digo isso, é porque peço duas coisas. A primeira, já se resolve no teu silêncio, que não me peças para ficar. A segunda:
Vem.
Vamos subir nos barcos e nos abrigar somente às portas dos arco-íris. Nosso teto vai ser só a galáxia, os universos múltiplos que não enxergamos. E se experimentarmos algo que nos deixe altos, altos, altos, não há o menor perigo de esbarrarmos no teto. Vamos nos espichando e nunca vamos acabar de flutuar. Só te peço, por favor, que não mantenha os pés no chão. As paredes da casa seremos nós. A única biblia nessa nação vão ser os versos que vamos ler nos muros ou nos livros soltos no caminho, e os versos que vamos escrever quando sozinhos ou gritar quando num grupo que entenda enfim o nosso verbo estrangeiro. Vamos pisar o mundo, mas não pisar no mundo de botinas como os homens fazem, com seus calçados engraxados em lama e sangue. Vamos pisar como se pisam as uvas, com afeto e pés descalços, e depois mergulharemos no vinho, no suco, no sumo que se forma.
Vem comigo e não diz do quanto sou menina e idealista, não diz da minha impossibilidade de vida prática, não me mergulha nos teus papéis. Vamos rasgar os papéis e tatuar o que tínhamos a dizer. Me encontra à meia-noite no meu barco. Já está aberto o nosso abrigo em arco-íris, vamos flutuar em rios de vinho.

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