quinta-feira, 28 de setembro de 2017

espelhos

ele queria ver algo

quando lhe olhasse os olhos

ele queria ver dentro do vidro 

do cerne da vista 

a vida dos olhos

e no envoltório

a íris e o corpo

habitados


ele afundaria o espelho

em busca dos olhos

ele buscaria no espelho

alimentar o corpo

de chamas e história

para não se ver

tão pouco morado

que nem os olhos

não olham


terça-feira, 26 de setembro de 2017

Conexão

Uma e doze. Meu rosto junto ao meu entorno são iluminados pela luminária quebrada que se apóia na cama. O resto do quarto se lambe nesse escuro incompleto. Não quero dormir, encontrei mais um monte de músicas tristes em minhas pesquisas. Não quero dormir, e perder essa madrugada. Mesmo que eu acordasse e ainda fosse noite, ela seria outra, mais lúcida e menos viva. Eu quero assim: madrugada de noite cansada. Vou ficar aqui ouvindo essas músicas de vozes suaves e tristes, às vezes diluídas e escondidas na melodia, só de estar aqui tudo é melancolia, e eu a abraço com toda a força de meu sussurro. Há algo que nunca se cura – e nem desejo curar – que encontro nessas noites. As vozes deles não me deixam estar de todo sozinha, mesmo quando estou no mais fundo de mim, de onde mal cabe a escada de volta. Eles me puxam o olhar – quase que esqueci de checar o invisível de novo – há tantos solitários acumulando pó nos sapatos.


sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Escritos de ressaca nos quais sequer acredito

A bebida é a desculpa para se agir verdadeiramente como se quer agir. 
Desconfio de quem bebe porque precisa, são perigosos. 
Prefiro quem bebe porque gosta: hábito menos tirano.
Ninguém precisa de álcool, assim como ninguém precisa de amor, mas ambos funcionam que é uma beleza contra o vazio existencial. 
Só que a bebida às vezes mata o amor. 
E às vezes torna-o mais intenso do que seria no seco.
Injusto é associar bebida à jovialidade, ela, tão envelhecida. 
Não há nada jovem em beber, a diferença é que talvez jovens pareçam mais felizes quando o fazem.
Eles bebem para comemorar algo invisível ou afogar mágoas ínfimas. 
A velhice bebe para esquecer, até mesmo de que é velha. 
Eu só bebi porque parecia bom beber. 
Percebi há muito tempo que a bebida não cura meu vazio, apenas molha. 
Então se bebo é sem solução. 
Gosto da sobriedade geralmente porque nela eu vivo autêntica a minha falta de controle. 
Não aceito ser controlada por nada – amor, bebida, medos – meu descontrole é meu e por mim. 
E se mantém.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

invadir

se eu cavar um abrigo em tua boca

entrar no espaço de um dente

tomar-te o corpo por dentro

ser a tua parasita


em vão tentarás tossir

                          expelir-me

te ocuparei o corpo inteiro

residindo nas feridas

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Por tudo o que não é cristal

Poderia querer me destruir para começar novamente na primeira palavra um enredo que diferisse dessa história de julgamento e egoísmo que vem sendo narrada. Mas então a primeira página seria cheia dos silêncios do que não foi e eu não saberia interpretar. Chegando na metade, estaria enojada. Teria eu construído uma narrativa de princesas e sapatos mágicos? Não assimilei nada das pedras que não haviam nos sapatos, dos vícios que não invadem os sonhos plásticos da princesa. Ainda antes da metade eu teria medo do meu mundo. Já não o tive sem querer? O cristal de uma sapatilha jaz espatifado do último baque. Então eu olharia, ou olhei, para a próxima página sentindo um peso na mão, pruridos de rasgar todas últimas que levaram até ali e largar tudo para construir um próximo castelo de cartas; ou então vou sentar com um livro de recortes em mãos e construir outra história infeliz de julgamentos e egoísmos, para pelo menos ter matéria de dúvida ou de aprendizado antes de me trancar nos palácios de vidro.

sábado, 16 de setembro de 2017

presente

num domingo de manhã

desenharei as nossas formas 

no lençol

o que for sombra, o que suor

servirá de contorno

eu riscarei o entorno

de lápis de cor


que assim nós voltamos

para casa e talvez

haja inverno

e talvez semanas 

sem recordações


mas o sol que entra na janela

vai nos flagrar

dia após dia

num domingo de lençóis

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Planos para a noite

- Já sentiu o gosto da quietude? Amarga mais que esse vinho. Sou todo dia berço de palavra não dita, repleta de verbo até o fígado. A palavra contida, a vida a conter-se nas raízes. No copo, hoje, vou ser explosão de palavra. E nenhum tabu, nenhum sentido vai escapar de meu verbo desesperado. Eu poderia ter dito em qualquer outro momento da vida, mas nesse gostaria que olhassem para os vincos da minha testa a seriedade que coloco no dito e na proposta. Eu cansei do apelo das boias. As boias, eu me agarrava mais e mais a elas e furava-as com as unhas. Não posso mais submeter meu corpo à segurança de manter-me sã. Não admito mais o grito contido que é me manter sã. E sinto muito se isso te ofende e perturba. Sinto muito se me prefere muda. Sinto muito se me coloco cada vez mais perto da morte. Eu preciso sentir a morte no verbo para falar. Minha voz se distila nas feridas. E eu falo cada vez mais, mesmo que use menos palavras, porque vou aos poucos aprendendo o que há de sangue em cada sílaba. E assim, mesmo que não saiba o que estou dizendo - agora não faço a menor ideia do que estou dizendo - tudo aquilo que enuncio é um peso ainda que liberte. Nenhuma palavra é em vão, sinto despencarem de mim todas elas. Me faço pedra para os teus carinhos, e ninguém nota. A palavra é a única que sabe quando estou sendo falsa. A única que sabe o medo que eu sinto de enganar-te. E eu preciso programar o fim desse silêncio. Toda palavra que contive pesa meu papel. No copo, hoje, vou ser verbo desesperado. E tu não vai ouvir, de novo. Tu sabe o que diz o canto de um pássaro?

domingo, 10 de setembro de 2017

Enunciar-te

Eu te pus um feitiço e com isso me afetei. Mascarei encantos no teu nome no momento em que o citei. Se lhe criei, foi pelos versos. Eu te coloquei feitiço porque te fiz palavra e foi palavra dita. Rabisquei teu nome num papel e nisso ele ficou mais meu, mais perto, e nunca mais vai se desvincular posto que escrito. Tua existência se subordinou no momento exato da caneta. Te alegra que eu não escrevi – nem vou escrever – de amor, pois então seria algema. Me contento no feitiço. O teu nome virou meu e nos abraçamos em verbo infindo.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

compromisso

duas décadas e pouco
e ainda não aprendi
a não prender minhas mãos
nas mãos de outro.

já dispensei grade algema aliança
amaldiçoei a marca das cordas
e mesmo assim me colo só
com gozo baba lágrima
essas mãos crucificadas

imóveis os dedos
grudados ao suor
da palma de outro
tão trancados
que se os arranco
em um átimo
rasga a pele tudo rasga
e se perde em pedaços

quando desarranjo os nós
não sobra mais que esses rasgos
sobre as mãos dele intactas
a culpar as minhas mãos.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Das razões de paralisar a escrita e das razões de seu retorno

Eu não sei escrever nada daquilo que queria escrever. Parece que minha boca se fechou, os dedos estão duros, como se o tato tomasse a derradeira consciência de tudo aquilo que não sei. Houve uma voz um dia – era reprimida, mas era uma voz – agora se move estranha por essas linhas. Tudo muito falso. Em verdade, nem sei se subsiste ainda. Anda torta e em fragmentos. Eu não sei o que faço com essa compulsão por escrever quando o conteúdo me lacuna. Não adianta encher as páginas de uma sílaba ou uma palavra só. Não adianta escrever Vontade Vontade Vontade até o fim desse caderno. O que meu corpo deseja é a mágica das palavras se encadeando umas nas outras em comboio. A vaidade fracassada de ter frases só minhas. Mas essa caneta rabisca sem roteiro e sem sentido, não vai sair mais nada daqui. Nem sei por que persisto. Olho para o caderno e dá uma dor – sei que não há mais o que dizer – sei que não sei dizer – sei, e admito isso com relutância, que talvez eu nem precise dizer, e essa necessidade que me imponho pode até ser falsa – mas eu não consigo, não consigo não dizer tudo isso que nem sei dizer.