quarta-feira, 14 de junho de 2017

Reversiva

Nos bancos azuis do ônibus sentavam rostos nossos e de outros, os pés quase se tocando, mas eu tão somente olhei para a janela e não vi assentos nem pés e evitei todas as faces principalmente do que causou o movimento de não olhar as faces. Sentada à janela do banco reversivo – o que encara e se coloca no alvo do encaro do resto do ônibus – aquele que deixa as pessoas tontas de ver a paisagem ao revés – dei graças a deus havia uma janela onde meu olhar se sumisse. Porque ele estava posto na minha frente, como um objeto de decoração a ser reparado depois de alguns minutos de feliz distração. Como um monstro que aparecesse numa tela, uma TV, um espelho, ele no meu olhar reversivo batendo na retina com mil estilhaços, com o arrepio e o menear dos meus braços e pernas e rostos todos se virando para o lado, escondendo-se na paisagem que corria ao contrário, que pra ele corria certa se ele olhasse a paisagem ou olhasse nos meus olhos o reflexo da paisagem que eu nem via. Mas se olhou, eu não vi. Nas fronteiras dos olhos ele parecia sublime e quis olhar de frente para desconstruí-lo e quis olhar de frente para enfeia-lo mas eu era fraca e não conseguiria, mas eu era fraca e não esqueceria a fisionomia de mágoa em que ele se transmuta, e eu tenho medo do tanto de mim mesma que enxergo e temo cair no meu abismo se olhar para frente para sempre e ele se grudar na minha retina e eu nunca conseguir mais remover nem com demaquilante nem com desinfetante e ficar a imagem dele de touca – primeira vez que o via de touca – para sempre me doendo bem como outras tantas cujos estilhaços eu já guardo, é um perigo, ônibus são um perigo, principalmente os bancos reversivos de se enxergar o contrário da paisagem e o universo do transporte como uma TV ligada num programa sem graça e triste como ver ele e saber não tê-lo e saber não querer querer tê-lo e ter medo de mergulhar tanto em mim que me descubra, sinto que preciso descer na próxima parada, senão eu olho, senão eu olho, senão eu morro, e é só um botão vermelho que periga acabar com meu perigo e eu queria? Sairia do ônibus na parada mais desconhecida dos rostos mais feios grotescos desconhecidos e numa lixeira vazia eu vomitaria toda minha mágoa todo meu enjoo da abordagem reversiva.

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