segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Sonho

Golfinhos por toda a parte, por baixo e por cima das águas, em um azul onde eu nunca poderia pertencer. Me perdi no sorriso de um, que nem parecia animal – muito menos humano – era todo sensação. E dentro dele eu nadava, era também golfinho, também sabia sorrir. Coberta de água que era salgada mas não eram lágrimas, pensei a minha possibilidade de ser golfinho. Hoje penso que nunca seria, esse eterno colocar em palavras me impede, a racionalidade cronológica me tira do mar, não me deixa mergulhar por mais que eu queira. Era sem eira nem beira esse desejo de ser golfinho e ser livre sem medo de ser a próxima presa, sem necessidade de exibição, apenas a pulsão do momento de pular, a felicidade extrema de saber o salto como objetivo último e ser menos corpóreo e mais dissipado no ar. Mas eu não pensava em nada dessas coisas tristes que questiono agora de fora do mar. Lá dentro, vivendo eu-golfinho só havia o momento de ser e nada mais. Como a paz de uma meditação, molhada de água e desejo seguindo a ação de meus impulsos. Porque obviamente era eu e mais ninguém, e eu era livre, perfeitamente livre naquela pele de animal, em uma energia que do jeito que me envolvia não tinha como não saber que era selvagem. Era um gozo que não tinha absolutamente nada de mim no meio. Era corpo sem fome e sem anseios além de pular e gritar, num átimo de sorriso espalhando nas águas o sangue de minha alegria. E só em falar em sangue eu já sei que volto a ser eu. Como golfinho tudo era sobre água, ar e ser. Agora volto a sangrar. Não há melhor maneira de me saber humana.



terça-feira, 24 de outubro de 2017

poema sobre nuvens

não é ser etérea

pois mesmo a terra

que cresce em meu corpo

tem seus furos por onde

o corpo se esvai


não é voar

pois mesmo que enterre

meus ossos na areia

mesmo que mergulhe

até chegar ao magma

algo em mim sempre paira

um vento que trago 

nas veias


não é algo que só nuvens deem

não é encontrar deus

ou uma metáfora

não busco balões perdidos 

aviões fora do rumo

paisagens suicidas


tudo que procuro

é não me encontrar

tudo que procuro ali

é colidir

no que todos os dias

não sabe ser


domingo, 22 de outubro de 2017

Marina

    Há algo que faz com que minha memória de quando e quando se volte para aquele verão, talvez uma reação à personalidade que tento reprimo mas que me assalta às vezes, talvez uma culpa sem sentido, um medo de quem eu sou. Tento dizer que não dou importância a isso, mas minha memória me desmente, me mostrando o quanto fiz questão de guardar essa lembrança e revisitá-la de tempos em tempos. E escrevendo eu tento entender por que, tanto tempo depois, mesmo com os contornos da história apagados, eu ainda me lembro tão bem da última vez que eu vi Marina. 
    Por uns dias eu pude chamá-la de amiga, e a sensação era boa. Nos conhecemos naquele verão. Todas as atividades fazíamos juntas, as colagens de revistas, as brincadeiras. Não sei o que fazíamos lá, parece uma espécie de creche misturada com colônia de férias, e há uma possibilidade de que fosse algo relacionado à igreja, mas não sei – o catálogo objetivo dos fatos não se guarda nessas lembranças – só sei que havia uma diversidade de crianças e que eu já me sentia inadequada embora ainda não tanto. Lembro que era em outra cidade, que não via sempre meus pais mas eles estavam por lá, que havia uma monitor chamado Brasil, e que lá eu me permiti uma amiga, e era ela.
    Marina era minha dupla oficial, e uma presença serena, me entendia de uma forma que nem todas crianças entendem. Lembro dela como determinada e talvez um pouco mais madura. Andava de mãos dadas comigo e com as crianças menores, de quem gostava de cuidar. Eu não gostava tanto, mas com ela era divertido. Ela era doce e eu, em um primeiro momento, também. Na última apresentação devíamos interpretar diversos tipos de mães, ou de mulheres no geral. Era um teatro para os pais, eu não lembro se fiquei nervosa, não lembro se interpretei direito. Mas lembro de escolhermos os papéis. Ela era a empresária, e eu a dona de casa, o mais distante possível em relação aos meus sonhos. Nunca soube porque escolhi justo esse papel, talvez fosse para viver uma fantasia maior, talvez fosse para brincar com bonecas. Nos apresentamos, todos pais aplaudiram. Eu não sei o que os meus pensaram, nunca perguntei tampouco me interessa. Eu e a Marina éramos um sucesso, brincávamos juntas, passeávamos de mãos dadas pelo pátio e conversávamos na linguagem das crianças, que não sobreviveu à memória. Combinamos várias vezes de nos encontrarmos novamente.
    E então é o último dia. Juntamos os brinquedos que estão espalhados pelo chão, e eu não sei o que se passa na minha cabeça. Todo meu interior nesse momento é uma incógnita para mim ainda, e talvez seja o real motivo para essa memória me restar tão vívida. Eu coloco os brinquedos de volta na caixa, não sei se estou com raiva, se tranquila. Ela vem para perto de mim e oferece ajuda. E, por um momento, eu acho que a odeio. Súbita e sem motivos. Ela sabe. Me encho de espinhos contra a presença dela, e não sei o que digo. Acho que digo que me cansei de estar com ela, que seu modo de falar e brincar comigo é tão chato, que me deixe sozinha, que vá para longe, eu não sei. Mas ela chora, e essa é a primeira vez em que consciente eu faço alguém chorar. Ela chora e não me entende mais, tudo é estranho. Já nessa época eu não me entendo. E eu não sabia dos riscos de perder. Ninguém entende por que fiz lágrimas na menina – nem mesmo eu. Quando os pais dela a levam para o carro, nossa despedida é morta, estranha. Todos os tratos que fizemos se desfazem silenciosamente. Nunca mais vamos nos ver, e até hoje não sei o que houve em mim, o que eu disse à Marina, e principalmente, por que eu cresci e nunca esqueci, o porquê da impressão de que tudo depois disso seguiu um padrão, uma progressão, que se inicia com essa culpa misturada a um quase desejo de ferir.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O que quero

Desânimo. Um dia fui o mais vivo deles até o que era ânimo fugir e me deixar apenas com meu corpo. Eu já não tenho a que atribui-lo se não à própria (não) vontade do corpo. Eu não tenho culpa se meu braço parece que vai se dissolver antes de eu largar a caneta, se minha mão me ordena a parar a escrita, pausando aos poucos, comendo as letras que agora (no segundo agora) conserto ao digitar no computador, ainda com as mãos cansadas mas já não tanto. Eu não tive, e ainda não tenho, culpa do modo como meu corpo vai se morrendo, de não estar a fim de falar com ninguém, de não estar a fim de ficar contigo, de não estar a fim de ler o que me comentas. Tudo o que eu quereria é permanecer na cama por vários dias, a ver se consigo na carne que se inteira recuperar qualquer coisa daquilo que um dia eu fui.

sábado, 14 de outubro de 2017

Plateia

    Quando ele apareceu, eu não sabia sentir. Havia um certo desespero por sentir algo, como se minha mente ficasse nublada em busca das sensações. Ele era um ponto branco em um palco tão distante da minha visão, que percorria uma multidão de cabeças e telas luminosas até chegar ao que devia ser ele, e eu sabia que era, pelo telão que flutuava-o em evidência, guitarra nos braços, cheio de histórias, belo belo. Eu cantava junto a primeira música aos pulos, mas ainda procurando no universo de dentro de mim como em uma espécie de mostruário qual o sentimento a ser sentido. Cavava no fundo de mim porque queria me saber bebendo cada minuto, precisava de algo que não sabia onde estava. Primeiras músicas e eu ainda estava me abstraindo dentro de toda a energia que eu não sabia onde canalizar. Eu voava para longe de mim e ainda assim tentava me fazer significar. Minha mente se perdia tão longe naquele palco, no céu, adiante, e depois me voltava bumerangue. Numa dessas voltas, numa das músicas, eu senti. Talvez justamente de tanto que eu desejei sentir. E ainda assim nada tornaria aquilo menos real. Eu estava bem dentro do meu corpo e da minha respiração, eu era toda a minha imensidão. Ali onde estava. Na minha volta, ninguém fazia sentido - todos faziam seus próprios sentidos, eu fazia o meu.
    Em uns instantes eu consegui captar o doce dos minutos escorrendo dentro de mim; às vezes eu fechava os olhos cantando e estava plenamente dentro do minuto, quase que no domínio do tempo, mesmo que somente de um fragmento. Minha voz me ocupava toda ao acompanhar a música que ele tocava, ninguém podia escutá-la, fundia-se ao som que se externava, mas continuava tão íntima e minha, tão escondida me pertencia. Minha voz invadia discreta a melodia dele e a melodia dele invadia a mim inteira. E esse é o momento em que, mesmo sem que ele perceba, a gente se encontra; e as memórias que ele traz encontram um momento de confluência com as memórias que eu trago. Saboreei num canto do sorriso nossa conexão. Tudo aquilo que ele precisou passar, as escolhas que tomou, as pessoas que conheceu, as inspirações que teve de repente deitado na cama para então se levantar de súbito e escrever, ou tocar; pensei em toda a vida que ele continha naqueles braços tão acostumados às guitarras, nas memórias que talvez viessem junto com as músicas que cantava e só cantava porque um dia se sentou e fez existirem. Tanta memória, tanto passado até que ele chegasse ali naquele dia cantando a si mesmo para milhares de pessoas incluindo – uma gota de uma plateia gigante – eu. 

domingo, 8 de outubro de 2017

casa fechada

peço abrigo ao gelo

se ao abrirmos as portas

erramos o cálculo

ruínas as bombas

na sala de estar


se abrimos a porta

ao vento que entrava

mas veio a sujeira

limpamos o crime

varremos a sala

e pedimos abrigo

a algo finito


se fomos muito quentes

a escancarar a casa

somos quentes ainda

sufocando a mágoa

esse vento irrompido

em janelas ocultas

pedimos abrigo

e não há o que abrigue


o gelo acusa todos acusam

todos acusam queimarmos demais


sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Crimes

Eu quis ser boa, quando me parecia que havia o divino a um passo para o lado e que bastava um sorriso ou uma lágrima para ser de alma purificada. Eu quis ser boa - e colar em um mesmo pacote tudo o que eu considerava do estatuto do bom. Quis passar por ti como um aroma, um cheiro de dálias, discreto e patético, que não venta no rosto de ninguém, não invade os corpos mas paira no ar, e quando se vai embora, vai tão lentamente que o olfato demora a perceber de todo o peso do ponto final em um ar sem cheiros. Eu quis ser, quis me crer boa, falsifiquei uma doçura nessas carnes grosseiras. [Mas dia após dia as culpas essas culpas de tudo em que não me mantive e da pureza que não possuo das virtudes que não posso e esses gestos essas falas esses beijos o retirar de um beijo o retirar das mãos das mãos de outro o rasgo os vãos todo o dia me assalta e eu preciso aceitar o peso dessa farpa que eu trago e que sou e o quanto machuco o quanto eu vou te machucar eu sei que vou te machucar porque tentei tanto e tanto ser boa que não fui]. Eu queria ser tão boa que ninguém duvidasse, todos veriam minhas asas - perderiam de vista as lágrimas que escondi nos rolos de papel higiênico, mas eu seria tão tão boa que nem me importaria com os olhos que não me olham, eu olharia por todos, eu me estenderia embaixo do mundo como um tapete para que pisassem em mim no caminho para algo, felicidade, será, eu me estenderia como um tapete e eu deixaria que tu se deitasse ou se enrolasse em mim. [Mas é tudo duro e esses ossos eu juro que odeio esses ossos repletos de pecados e tutano e eu odeio esses pensamento e essa sempre iminência de ser má de te trair te machucar essa iminência que escondo nas minhas maçãs do rosto que veja bem são tão simpáticas e eu sei que sou mais má e o extremo é esse halo que pretendo essas asas que finjo em mim toda vez que eu não me mostro não querendo te magoar que nesse desespero de não magoar eu acabo magoando todas as pessoas todinhas todinhas que eu conheço essa culpa essa culpa eu queria dizer que desconheço]. Eu queria ser quem talvez acreditem que sou, ou talvez ninguém mais creia, e consigam dar as cores certas aos meus silêncios. [Eu estrago racho as vigas trinco os vidros eu traio as mãos que me abraçam e eu beijo como eu te beijo mentiras eu invento um carinho pelo prazer falso talvez não tão falso de ter carinhos e eu ainda consigo dormir de noite tão bem e eu estaria tão bem tão anestesiada em minha culpa se não fosse por essas viagens ou pelas músicas que me entram no sangue essa consciência essa tristeza de não ter conseguido de ter falhado em te oferecer algo de positivo de não ter em mim de onde tirar para te ofertar me falta todo esse leite para te dar e eu queria esquecer mas não consigo esquecer o quanto eu queria e realmente queria ter sido boa contigo]