quarta-feira, 26 de julho de 2017

De propósito

Não há motivos para além dos motivos que crio. 
As calças apertam nas coxas, o arroz está queimado, há uma mancha de tinta na poltrona. E eu direi decidida sobre o quanto é o destino, sobre os astros, sobre o fato de que júpiter entrou em tal estado astral. E que é por isso, e que veio do mundo esse azar constitutivo. Poderia dizer que essa comida de gosto queimado é uma tentativa da vida a torturar meu paladar. Mas a verdade é que o mundo é consideravelmente menos dramático. O caos se ordena sem calcular os milímetros de atraso entre ser atropelado, ser atingido pela água de uma poça, ou continuar o dia incólume. O mundo não está tentando o caminho da desgraça. Eu só trilho nas migalhas que eu mesma deixei antes para me guiar, e cada migalha é um medo.
As coisas são muito mais frias que eu, que tanto teimo em desviar os olhos e fingir não ter visto. Embora pareça que me agradam as ruínas, não. Porque é tudo tão forçado nessa tentativa de não forçar nada. Tudo tão recalcado na tentativa de não recalcar. Parece que falo o tempo todo de meus sentimentos sem nunca falar de fato. Deposito meus restos em cada caderno e mesmo assim parece que sobram sempre tantos restos em mim. O resto da ferida retirada leva a mais feridas inflamadas e eu não consigo elaborar. Dá medo viver se cada dor de estômago for uma dor a mais na memória. E então eu temo cada pessoa que amei, cada rejeição, cada frustração, toda dor que senti, os erros que cometi, os atos falhos, as vergonhas, as comidas ruins, porque tudo está em mim. Cada dor é um mundo e eu vou sendo todas elas, de propósito, performaticamente.

Um comentário:

  1. Acho que tu é brilhante, solta e livre como estrela que não desce no horizonte sem pensar muito bem.
    li algumas das tuas postagens, uma amiga me sugeriu essa leitura e
    devo te dizer que estou grato ao cosmos por tua presença de espirito.
    Uma boa semana.

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