segunda-feira, 7 de outubro de 2019

arranjo

riscando o mármore
elas caem
em estampidos contínuos
inaudíveis aos pedestres
só assustam ao louco
que observa o derrame
com os olhos tortos
de carinho

quem passa, repara
do mármore a sujeira
mas não a tristeza
das pedras

alguns até percebem
o louco a beijar
uma por uma delas
e colocá-las deitadas
de volta ao lugar
feito fosse um pai
ou criasse telas

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

prometo
que vem tempestade

e chuvisco

a nuvem cresce se ergue enegrece invade o cenário
e sucumbe, se dissipa

(chuvisco)

embora eu borde no cenho
a certeza
e teça um raio no traço azul da veia
logo tudo clareia 
e se afina

(chuvisco)

se quero inundar, respingo
mal soa o som nas pedras
e quem por acidente percebeu
que choveu
exclamou alheio
que chuvinha boa

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

começo da noite

não aprendi a dobrar o corpo com cuidado

amasso-o 

até caber no próprio embrulho

como um nó


as pernas perdem espaço

surge um tombo sem barulho

acolchoado no tecido


os cabelos se enroscam

nos sapatos

não sei desatar

meus medos da ponta

dos dedos enroscados 

ao chão


o assoalho é o portal

do fim do dia

o corpo fundido

teias tecidos peles

frizz e tédios

maçaroca indiscernível




segunda-feira, 16 de setembro de 2019

gata

olhos fixos no ladrilho
como gelos 
ela brinca
em ser pupila
ao encará-lo

no faro o ato
não ser mais 
que gato, e sequer conhecer 
sua força de ser pelos 
e olhos de ser 
profundamente própria 
ao ser felina
até os ossos


sexta-feira, 30 de agosto de 2019

apelo

não chora por dentro hoje feito

máscara de vidro toda a água 

que não brota e que teria

em outras existências 

inundado a casa e salgado a comida

e afogado nossos corpos hoje se esconde

em duras urnas te peço não derrama 

adentro sem olhar meu rosto só 

o teto que não é o teto em teus olhos

mortos como um abajur

um travesseiro um saco plástico


não derrama a água que não molha 

e me inunda enquanto viro lençóis, enrolando um todo

de corpos que é o teu e o meu e os nossos mortos

que hoje não grito hoje não digo guias

de como tudo deveria ser e como é ruim

ser tudo que se é hoje eu me esqueço

e sou só corpo sem baixar de olhos    nada

sem silêncios: puros

sejamos nós acordados e secos

sorrisos de nó 

na garganta


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

reconhecimento

me enterrei no percurso

finco o pé em cada passo
e grudo em mim
como um casulo

te achar não mudou o fluxo
nem o quão fundo
entram as raízes

nessa errância
meu pé ainda faz
o trabalho duro

mas agradeço
a companhia
em meu casulo

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

precisão

porte de margarida

feridas nas patas – das pedras

e o olhar de quem pede perdão

às patas

mas não sabe o que é perdão


o que sabe: 

o guizo e a grama 

ossos, amor, sangue 

o próprio corpo 

a soma precisa de vida

a que levante e ande

feito um monge


o que mais sabe:

coçar-se muito cachorro

meditar nos olhos

nuvem, vento, eu

enquanto medito

seus olhos sem deus


segunda-feira, 12 de agosto de 2019

sumidouro

ainda que dos gritos na câmara

caleidoscópios de ecos

retumbassem pelos cantos


mesmo que tocassem piano

dentro de teus órgãos

que plangessem tuas cordas


não há retorno

só o outro. só um louco no vazio

não há voz que te espalhe

somente câmaras em eco 

somente a câmara onde deus 

não põe o olho

grita em vão no espaço oco

grita o oco, puro e plano



sexta-feira, 9 de agosto de 2019

pelo cheiro

eles viram que não penteei os cabelos
quando surgi no pino da estrada
já trajava esse estado
(perceberam)
eu não era cápsula
não tinha casca (eles viram)
toda a carne de dentro
para fora feito origami

notaram calos e mordidas
o odor do tempo deposto no corpo
que não tinha capa
que não era cápsula

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

exílio

a amada me embala a cama

onde o corpo se enovela em fuga 

da frieza das paredes

estou bem no meio e tenho medo 

de escapar desta manta

oscilo os ombros na movência

de minha pele em suas mãos

sem pele

que embalam


criada a redoma encubro os dedos

em seu colo 

e com os olhos guardamos

o alicerce da casa

ninguém ameaça -- andamos reclusas

ela me despe da blusa

e dos males do mundo



segunda-feira, 29 de julho de 2019

buraco

um dia

acabou a música.

gritei aos céus

e atiraram pedras frias.

criavam lacunas

que eu expulsava

como se expulsa um cisco.


as pedras

sulcaram no rosto

uma colmeia.

romperam as veias.


e a música.

nada no céu.

e no meu corpo.

a surdez das pedras.


sábado, 27 de julho de 2019

parada

aqueles que me ultrapassam são outros

e eu sou sua outra

o rosto rouco da espera


aqui!, mas o ônibus ri

passa reto e sem ninguém

(todo ônibus tem o desejo 

secreto de levar ninguém)


sisudas rodas no asfalto

seu único calor é o atrito

braço adiante – estou aquém

de sua ânsia de rodar

meu grito não alcança ser grito

sou roda de pedra

e com trava


sexta-feira, 10 de maio de 2019

Cacos sob o líquido


Na casa da praia, a vó dorme, todos os cômodos estão no escuro e a única luz presente vem da televisão. A televisão é pouco nítida e só pega um canal. Assisto, com as duas pernas dobradas sob a poltrona dura, e me encanta na tela o olho graúdo da cantora. No escuro, como se todo o foco possível estivesse em si, parece ainda maior. Olho graúdo, boca da textura do sofá, gestos ousados e tristes. Tenho consciência de que ela não é a original, que morreu faz tempo, mas os episódios da série a revivem. Assisto como se fosse realmente ela, e como se agora fosse aquele tempo, ou melhor, assisto quase como se eu fosse ela e aquele fosse o meu tempo. E devaneio, com meus olhos absorvidos em seu rosto. Ela canta, atriz-personagem, bebe e canta, e eu me entristeço como se também tivesse olhos grandes. E aperto meus braços de tanto que me seduz esse exagero, entristecer-se até beirar o ódio, ser viva a ponto de ter calores, de ser insuportável, e então fazer algo bonito, e tudo está justificado. Ela canta que o mundo caiu, e quase choro porque gosto, e porque no fundo chorar é iniciação a acostumar o corpo. Sozinha no sofá da sala da casa da praia, a vó roncando no quarto, tenho 14 anos e é como se não fosse fácil. Invento um peso, que não deixa de ser real. Meu mundo também cai e eu nem sei por quê. Isso eu não inventei. Mas talvez aquela mulher também não saiba. Talvez ninguém. Fazer algo bonito e compensar que a cabeça não dê sossego. Eu só preciso, antes disso, de um copo gordo repleto de líquido castanho, e uma trilha sonora como essa, e eu vou xingar tanta gente com a minha personalidade que vai ser forte e não esse xarope derramado, vou xingar tantas pessoas, ter amores, nunca amigos, ser sozinha, pegar o copo e jogar na parede com força, e então criar algo bonito. O líquido vai se espalhar pelos cacos no chão e fazê-los brilhar mais. Essa parte nunca aparece nas séries, somente o estilhaçar. Mas eu imagino e acho lindo.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

De novo

Retomo esse bloco feio e sem capa para ver se, de alguma maneira, consigo me retomar. Toda volta à escrita volve aos primeiros passos. Me equilibro com dificuldade, com as duas mãos apoiadas no sofá, e salivo mais do que digo. Em todo retorno eu nasço, mas nunca aprendo a nascer. Todo fim ecoa como se fosse mesmo o fim, e para cada morte visto o sudário, me dispo na despedida mais primitiva. E outro dia estou aqui, com vestes que são mais corpo que o corpo enquanto arrasto minhas pernas muito pouco maleáveis pelo chão. Os primeiros passos foram molengos, disformes. Encaro as pegadas hesitantes, cobertas do barro que nem vi. Um dia cheiraram a talco, antes de alguma das mortes. Antes era diferente também o que saía de minha boca. Mas essa linguagem babada, do gosto doce de morangos quase podres, só não aprendeu mais sílabas porque não quis balbuciar. Por entre os lábios também se explode de tempos em tempos uma tosse, molhada, como se escalasse um visgo no peito. Então tusso sobre o bloco, mas isso não gera escrita, não se articula. A tosse é a fuga do processo; é o que sobra depois que visto a mortalha por tudo que não for a escrita. Eu sei que só posso me matar por escrito. Qualquer outro modo doeria menos.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Sofás

I

A família toma espumante em taças finíssimas e defende a pátria. A família se delicia na frente da tv. As mulheres da família usam brincos brilhantes nas orelhas e precisam disfarçar as varizes, os homens da família têm o peito peludo e as línguas cheias de cerveja. A família se instala nos sofás da sala de estar e comete alguns crimes verbais entre os dentes sujos de docinho. A família usa guardanapo para limpar os cantos das bocas. A família cruza as pernas se for mulher e não cruza se for homem.


II


Olho fixamente a televisão durante o hino. Quero vivenciar com febre essa derrota, meter o dedo dentro da minha própria ferida. Tudo soa trágico sob a letra parnasiana e o canto empolado e público. Quase sinto uma iminência, como se a qualquer momento fosse ruir uma bomba vinda do subsolo ou o sol fosse explodir em mil cacos amarronzados, como de uma garrafa velha de cerveja. Só que nada ocorre e é falsa minha iminência. O hino salta como um cavalo sob o meu ódio e se encaminha para o final, na boca azeda dos homens de gravata. Ninguém vomita ou dá gargalhada. Nada anormal nem nesse universo outro nem no espaço da televisão, nossa heterotopia. Na sala, apenas comentários, curtas risadas, todos os rostos com os maxilares encaixados normalmente, sem trincagens. Somente eu, rasa em meu assento, com as gengivas aparafusadas na tela e os olhos fixos, afinando, afinando, como se prestes ao desmaio, e ainda assim carregando uma fúria indecente. Logo ele discursa, e nós continuaremos nossa tarde de cachorros e espumante como se não fossemos todos culpados.


III


A família gosta de roupas brancas e sofás fofos como esses. Eu tenho nojo. A família gosta de mim e me olha calorosa vez ou outra. Eu tenho culpa do nojo. A família contempla com orgulho o dinossáurico que puseram na televisão. Eu tenho nojo outra vez. Vou tendo nojos indiscretos a tarde inteira.  Olho para minhas unhas, nos fiapos da carne. Ouço porque não posso arrancar de mim os sons como quem arranca um dente prendendo-o ao trinque da porta. Não me orgulho de nada, o que é uma forma de sanidade. E tenho medo de uma porção de coisas, o que também é sanidade. E assim meio maluca, furando com os olhos o lcd, acho ora sim ora não que estou lúcida. É sempre um perigo que se corre. A família se sabe lúcida. Racional. A família usa óculos que troca às vezes e crê ter resolvido o problema. A família sabe que vai pro céu. A família escolheu a única opção possível, verde e amarela e azul do céu dos bons. Tenho novo nojo e o sol não explodiu. Prefiro a luminosidade feérica do meu inferno.


Green exploding sun (1970) - Allen David

sábado, 22 de dezembro de 2018

Conversa infinita

Tivemos a ideia de uma conversa infinita, para que nós também fossemos. As palavras restariam e, cobertos por elas, poderíamos enfim respirar aliviados: não nos chegou a morte. Pretendemos encarar qualquer vazio com nossos sons encadeados. Mesmo que todo o resto se destruísse, nós restaríamos na fala. Salvação do inferno de não ser mais.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita, pois todas as outras em volta eram limitadas, não valiam a comida que as sustentava, não nos valeriam nada. Perto de nós, as pessoas cheias de sílabas no prato sílabas com sal sílabas mergulhadas em chá sílabas amargas, mas a nossa conversa não. Porque todas as outras eram rasas e versavam sobre tudo que não era aquilo que a nossa versava, não falavam de universo e do caos, não falavam como nós falamos enquanto nos deitamos sob o teto de um quarto por cima do qual há um céu anoitecido que não paramos para olhar, mas que guia nossa forma mesma de dizer tudo que dizemos, de falar e de fazer silêncio na hora certa para o silêncio.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita como um beijo, porque havia infinitos dentro de nós mesmos, e vontade de potência. Pretendemos ser mais do que somos e explodir todos os tetos, inclusive o nosso, com toda a força no verbo, desestabilizando o pouco que estava estável.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita porque tua voz nascia na minha e a minha na tua e de parto em parto nos afastávamos dos olás e tchaus do dia-a-dia.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita para fingir que podemos escapar do dia-a-dia e nos universalizar. Mas não escapamos da miudeza do que somos, quando nos vestimos ou tomamos banho, mesmo que cheios de sonhos, esse nosso cheiro de humanos, de quem não escapa mesmo que se cante o universo, porque por mais que nos deitamos num colchão embaixo de um teto embaixo das estrelas, por mais que façamos textos, ou dialogamos na praça, na mesa com pizza, num sushi de músicas tristes, por mais que a gente tente em todos todos todos os espaços, por mais que falemos em ursos no cosmos e dinossauros e a teoria do caos e o destino e os cachorros e drogas e rap e comidas favoritas e o potencial humano para a destruição e nossas loucuras e essa tragédia e os problemas do corpo e essa vontade de ser mais do que isso aqui e essa intensidade que nos consome tão rápido quanto esses pulmões cheios de fumaça, por mais que a gente fale e fale, nós não escapamos.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita porque ignoramos que a mais infinita das conversas dura minutos, horas, no máximo uma semana porque diz tudo o que podia dizer e a imensidão era o que confeccionava cada palavra enquanto nos banhávamos já meio imensuráveis e transbordávamos nossas pretensões de tempo-espaço, porque o infinito, o real infinito, não dura nem um pouco, o que dura é a rotina, e todo infinito acaba eventualmente.
Nós inventamos uma conversa infinita porque é impossível haver uma conversa infinita.

Over the town, 1918 - Marc Chagall
Over the town (1918) - Marc Chagall