quarta-feira, 31 de maio de 2017

Davi

          Não posso abrir esse livro, eu disse a ele. Não vou suportar virar-lhe as páginas, fingir que não vi cada uma das ilustrações que mesmo percebendo de relance, mesmo nem olhando para elas, consigo reconstituir com exatidão. Tenho medo dos rostos das imagens e daquilo que elas lembram. Já basta o que eu não consigo esquecer. O texto – eu não precisaria mesmo abrir uma página sequer desse livro – o texto eu sei de cor, é como se estivesse gravado em mim. E me pego de madrugada ou então durante o banho recitando sem querer, como quem imagina diálogos, como quem planeja discursos, eu trago inteiro o livro e apresento ao quarto, ao banheiro. Não pensa que eu queira, pus fogo ao meu exemplar. Mas ele está todo em mim, incrustado, tatuado. Então não me peça para abrir o livro, como se olhar de novo as imagens ou esse texto fosse me fazer purgar os meus traumas, fosse me libertar. Ninguém sabe o que aconteceria, eu não quero saber, se abrisse o livro, eu não quero saber.
          Só Davi saberia. Porque ele sempre sabia de tudo, e da maneira mais inocente. Ás vezes, após ler o livro e ver que ele ainda não dormira, eu pedia-lhe conselhos. Tolamente, eu sei que parece. Eu falava de um e outro problema – eu sempre tenho um novo problema – e pedia que ele me dissesse o que fazer. Ele dava soluções óbvias e disparatadas, mas tão boas de ouvir, como se todos os conflitos fossem fáceis e nada nunca pudesse me impedir aquele sorriso de estar lendo a Davi no fim da noite. Eu interpretava suas ideias como um oráculo, como se mesmo não fazendo sentido à princípio, tivessem algum significado profundo para mim. Acho que ele teria sido um sábio. Eu, que nunca tive vocação para a sabedoria, me contentaria em ser a mãe do sábio.
          E nem isso. Por meses tentei descobrir o porquê desse livro. Se era algo na história, nas ilustrações, se havia em uma frase um sentido que eu não captasse, porque após passarmos por esse, sempre voltávamos a esse. Alternávamos com outros, mas esse sempre estava ali na estante, para as noites mais frias ou os problemas mais insolúveis. Às vezes ele dormia na metade da história, mas eu sempre ia até o fim. As madrugadas de casa se acostumaram ao som da minha voz. Eu lia um pouco para ele, um pouco para mim, observando-o dormir, os crespos caindo por cima do rosto, a boca aberta. Ele dormia calmo, mas espichado, como se estivesse se oferecendo por inteiro à cama, ao sono. E eu continuava lendo até chegar ao derradeiro ponto. Desligava a luz, dava-lhe um beijo e saía, a minha voz ainda ecoando.
          Depois ainda procurei no livro o mesmo sentimento, mas não houve. E meus problemas também foram se acumulando, não havia oráculos. Agora ele me oferece esse livro, quer que eu o abra e leia nessas noites em que não consigo dormir. Quer que eu me confronte com minhas dores. Mas não adianta, é sempre uma dor diferente. Mantenho na casa tudo igual e à noite me abraço às minhas perdas. Ele me diz que estou afundando, e talvez sim, mas não há Davi que ajude. Então me resto na cama, espichada, e me ofereço ao sono.

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