Não posso abrir esse
livro, eu disse a ele. Não vou suportar virar-lhe as páginas, fingir que não vi
cada uma das ilustrações que mesmo percebendo de relance, mesmo nem olhando
para elas, consigo reconstituir com exatidão. Tenho medo dos rostos das imagens
e daquilo que elas lembram. Já basta o que eu não consigo esquecer. O texto –
eu não precisaria mesmo abrir uma página sequer desse livro – o texto eu sei de
cor, é como se estivesse gravado em mim. E me pego de madrugada ou então
durante o banho recitando sem querer, como quem imagina diálogos, como quem
planeja discursos, eu trago inteiro o livro e apresento ao quarto, ao banheiro.
Não pensa que eu queira, pus fogo ao meu exemplar. Mas ele está todo em mim,
incrustado, tatuado. Então não me peça para abrir o livro, como se olhar de
novo as imagens ou esse texto fosse me fazer purgar os meus traumas, fosse me
libertar. Ninguém sabe o que aconteceria, eu não quero saber, se abrisse o
livro, eu não quero saber.
Só Davi saberia. Porque
ele sempre sabia de tudo, e da maneira mais inocente. Ás vezes, após ler o
livro e ver que ele ainda não dormira, eu pedia-lhe conselhos. Tolamente, eu
sei que parece. Eu falava de um e outro problema – eu sempre tenho um novo
problema – e pedia que ele me dissesse o que fazer. Ele dava soluções óbvias e
disparatadas, mas tão boas de ouvir, como se todos os conflitos fossem fáceis e
nada nunca pudesse me impedir aquele sorriso de estar lendo a Davi no fim da
noite. Eu interpretava suas ideias como um oráculo, como se mesmo não fazendo
sentido à princípio, tivessem algum significado profundo para mim. Acho que ele
teria sido um sábio. Eu, que nunca tive vocação para a sabedoria, me
contentaria em ser a mãe do sábio.
E nem isso. Por meses
tentei descobrir o porquê desse livro. Se era algo na história, nas
ilustrações, se havia em uma frase um sentido que eu não captasse, porque após
passarmos por esse, sempre voltávamos a esse. Alternávamos com outros, mas esse
sempre estava ali na estante, para as noites mais frias ou os problemas mais
insolúveis. Às vezes ele dormia na metade da história, mas eu sempre ia até o
fim. As madrugadas de casa se acostumaram ao som da minha voz. Eu lia um pouco
para ele, um pouco para mim, observando-o dormir, os crespos caindo por cima do
rosto, a boca aberta. Ele dormia calmo, mas espichado, como se estivesse se
oferecendo por inteiro à cama, ao sono. E eu continuava lendo até chegar ao
derradeiro ponto. Desligava a luz, dava-lhe um beijo e saía, a minha voz ainda
ecoando.
Depois ainda procurei
no livro o mesmo sentimento, mas não houve. E meus problemas também foram se
acumulando, não havia oráculos. Agora ele me oferece esse livro, quer que eu o
abra e leia nessas noites em que não consigo dormir. Quer que eu me confronte
com minhas dores. Mas não adianta, é sempre uma dor diferente. Mantenho na casa
tudo igual e à noite me abraço às minhas perdas. Ele me diz que estou
afundando, e talvez sim, mas não há Davi que ajude. Então me resto na cama,
espichada, e me ofereço ao sono.
Nenhum comentário:
Postar um comentário