domingo, 22 de outubro de 2017

Marina

    Há algo que faz com que minha memória de quando e quando se volte para aquele verão, talvez uma reação à personalidade que tento reprimo mas que me assalta às vezes, talvez uma culpa sem sentido, um medo de quem eu sou. Tento dizer que não dou importância a isso, mas minha memória me desmente, me mostrando o quanto fiz questão de guardar essa lembrança e revisitá-la de tempos em tempos. E escrevendo eu tento entender por que, tanto tempo depois, mesmo com os contornos da história apagados, eu ainda me lembro tão bem da última vez que eu vi Marina. 
    Por uns dias eu pude chamá-la de amiga, e a sensação era boa. Nos conhecemos naquele verão. Todas as atividades fazíamos juntas, as colagens de revistas, as brincadeiras. Não sei o que fazíamos lá, parece uma espécie de creche misturada com colônia de férias, e há uma possibilidade de que fosse algo relacionado à igreja, mas não sei – o catálogo objetivo dos fatos não se guarda nessas lembranças – só sei que havia uma diversidade de crianças e que eu já me sentia inadequada embora ainda não tanto. Lembro que era em outra cidade, que não via sempre meus pais mas eles estavam por lá, que havia uma monitor chamado Brasil, e que lá eu me permiti uma amiga, e era ela.
    Marina era minha dupla oficial, e uma presença serena, me entendia de uma forma que nem todas crianças entendem. Lembro dela como determinada e talvez um pouco mais madura. Andava de mãos dadas comigo e com as crianças menores, de quem gostava de cuidar. Eu não gostava tanto, mas com ela era divertido. Ela era doce e eu, em um primeiro momento, também. Na última apresentação devíamos interpretar diversos tipos de mães, ou de mulheres no geral. Era um teatro para os pais, eu não lembro se fiquei nervosa, não lembro se interpretei direito. Mas lembro de escolhermos os papéis. Ela era a empresária, e eu a dona de casa, o mais distante possível em relação aos meus sonhos. Nunca soube porque escolhi justo esse papel, talvez fosse para viver uma fantasia maior, talvez fosse para brincar com bonecas. Nos apresentamos, todos pais aplaudiram. Eu não sei o que os meus pensaram, nunca perguntei tampouco me interessa. Eu e a Marina éramos um sucesso, brincávamos juntas, passeávamos de mãos dadas pelo pátio e conversávamos na linguagem das crianças, que não sobreviveu à memória. Combinamos várias vezes de nos encontrarmos novamente.
    E então é o último dia. Juntamos os brinquedos que estão espalhados pelo chão, e eu não sei o que se passa na minha cabeça. Todo meu interior nesse momento é uma incógnita para mim ainda, e talvez seja o real motivo para essa memória me restar tão vívida. Eu coloco os brinquedos de volta na caixa, não sei se estou com raiva, se tranquila. Ela vem para perto de mim e oferece ajuda. E, por um momento, eu acho que a odeio. Súbita e sem motivos. Ela sabe. Me encho de espinhos contra a presença dela, e não sei o que digo. Acho que digo que me cansei de estar com ela, que seu modo de falar e brincar comigo é tão chato, que me deixe sozinha, que vá para longe, eu não sei. Mas ela chora, e essa é a primeira vez em que consciente eu faço alguém chorar. Ela chora e não me entende mais, tudo é estranho. Já nessa época eu não me entendo. E eu não sabia dos riscos de perder. Ninguém entende por que fiz lágrimas na menina – nem mesmo eu. Quando os pais dela a levam para o carro, nossa despedida é morta, estranha. Todos os tratos que fizemos se desfazem silenciosamente. Nunca mais vamos nos ver, e até hoje não sei o que houve em mim, o que eu disse à Marina, e principalmente, por que eu cresci e nunca esqueci, o porquê da impressão de que tudo depois disso seguiu um padrão, uma progressão, que se inicia com essa culpa misturada a um quase desejo de ferir.

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