I
Iz não se
importa se as luzes estão apagadas, ela passa pelo interruptor sem tocá-lo. Iz
já não se importa com muita coisa. O corpo reconhece a cama – abraçam-se carne
e colcha. As coxas desvelam o lençol. Deitada, encara o teto que imagina na
escuridão de acima. Pratica não saber o que sabe, não se encontrar onde a mente
diz estar, e de repente o escuro é não o escuro da casa mas o escuro de uma
floresta de copas tão cerradas que a luz da lua nem penetra e ninguém agora
sabe o que é árvore e o que é noite. Ou então está bem no meio de um rio. Se
estendesse os pés para fora da cama não sentiria as lajotas frias, mas o gelo
da água em que desapareceria sem deixar vestígios. Pode sentir um arrepio do
líquido que a envolve, negro da noite. A lua reclusa. Só a cama de Iz é que
flutua. Poderia até flutuar em meio ao nada – o mundo inteiro desaparecido e
apenas ela tão ela junto à cama e à angústia. Vagando. Mas ela não flutua. Tudo
é sempre sólido. Os olhos já se acostumaram ao escuro do quarto que agora já
não é escuro, onde agora ela vê o contorno do teto, enxerga as listras no pvc.
Conseguiria manter-se imaginando se fechasse os olhos. Criaria o mundo de novo,
líquido, flutuante e de mistérios. Mas é melhor mantê-los abertos. A cama não
flutua mais, e ela não dorme. Essa história não começa em um sonho.
II
Nem começa,
na verdade. Já vai saltando como sem saber por onde ir. Iz perdeu-se em meio
aos lençóis. Não conseguiu dormir, precisou virar a noite e encontrar o seu
avesso. Ela ainda não sabia a cor do avesso da noite. Ela ainda não sabe porque
não aprendeu a ver aquilo que só sente. Mas o avesso estava lá. Ela sentiu se rasgando.
Em um pedaço da noite estava a olhar o teto, cada vez mais claro conforme os
olhos iluminavam. Em algum momento estava lá. Estendeu a mão e pôde tocá-lo,
logo deitava-se pela superfície do teto e olhava o quarto que lhe caía do
corpo. Acima sentiu o acréscimo de nada, e o nada a envolvia mais conforme
ascendia. Adiante, sempre adiante na noite. Pensou que em um instante
esbarraria em estrelas, mas permaneceu, a cidade a ficar para trás. Clara,
reversa. Em cima da cidade não há céu, mas outras cidades espelhadas onde agora
é dia. Chega no teto de onde nunca partiu e volta para onde não esteve. Na
cama, nova e velha, está de novo a encarar o teto. Mas tonta, tentando reeducar
o sangue que insiste em fluir para a cabeça. Não precisa se levantar para saber
que do lado de lá da porta ninguém sabe que esse é o lado avesso.
III
A cidade
toda é um quebra-cabeça em aberto. Tudo parece desencontrado de Iz para fora. A
casa não passa o sentido da casa. As paredes do quarto já não são possíveis de
ler como eram antes, mudaram algo na textura. Iz estende-se na cama e olha em
volta. Algo falta, os detalhes sobram. Os móveis em volta são resto, porque a
ausência, porque silêncio. A sala é igual, mas não é a mesma. A casa não é mais
casa, engoliu o calor que tinha e não exala cheiro nenhum. Para além das
portas, nada muda – o avesso impessoa tudo. Iz tenta encontrar nos canteiros,
na praça da cidade, onde um dia talvez houvesse algo que se visse. Iz olha as
placas, entra na igreja, procura-se no mapa. A cidade é sem dúvida a mesma,
mesmo se espelhada. Tudo está no seu lugar, inclusive Iz, dando os passos que
daria num mundo que não fosse seu reverso. Talvez tudo se encontre ainda mais
organizado do que antes. Ela está nos lugares onde sempre esteve. Só não sabe aceitar
essa ausência estranha em todos os cantos. Algo por debaixo dos passos está
suspenso ou desfeito. Tudo é flutuação.
IV
Ruídos. As
pessoas invadem o dia. Ela espera que dos passos que chegam junto aos dela,
assim como daqueles que lhe são contrários, escapem fragmentos de sentido. Ela
quer ouvir as modulações das vozes e perguntar para algum passante de voz mais
calorosa o que falta, qual é a ausência na cidade dos avessos – por que tudo é
a mesma velha ausência. Ela aguarda pela voz mais próxima para abraçar-se a
sua. E ouve, ouve com o corpo inteiro. Ruídos. Todos que andam parecem falar ao
mesmo tempo. Alguns entre si, outros no celular, outros gritam por dentro,
todas as palavras se misturam na assembléia. Ela agora corre por entre as vozes,
se aproxima até ficar íntima dos ruídos, mas não distingue nada. Todos os
outros são só sons, nenhum significado. Ela quer falar, mas tem medo. Os ruídos
são muitos, os ruídos ultrapassam o cimento da cidade, a cidade vai rachando.
Iz quebra junto. Sente que apodrece correndo e parada no centro da cidade,
enquanto olha e ouve, mas não escuta, não diferencia voz que lhe acompanhe por
debaixo do barulho. Todos os ruídos estão sozinhos – eles criam a ilusão de um
conjunto, mas são feitos de um pigarro, uma risada, um grito que vêm de uma
garganta por vez. Todas as vozes estão sozinhas, é somente o silêncio que se
compartilha. É pena que no barulho não possa haver silêncio e,
consequentemente, não há voz que se distinga. Todas se atravessam simultâneas.
A náusea que Iz sente obriga-a a parar e restar. Encosta-se em um poste e tenta
lembrar alguma canção. Qualquer uma que a ajude a saber de novo como que se usa
voz.
V
Corre para
um refúgio desse caos. Corre para algum banco de algum terraço de algum prédio bem
alto - para sumir. Para chegar perto do lado certo desse avesso, escondido em
algum instante do céu. Lá talvez consiga. Em algum lugar talvez volte o senso,
a voz. Encostada em um poste dos mais cinzas ela cantou uma voz que não saiu. A
melodia vinha de dentro e insinuava-se nos lábios, mas ao sair, mais ruído a se
somar aos ruídos. Tentou cantar baixinho para si mesma, mas não houve voz. De
barulho tornou-se em nada, desapareceu em um pensamento do dito. Abriu a boca e
não saiu sussurro ou grito. O pensamento ainda dizia, ainda diz, pela cidade,
mas a fala não veio, a canção não veio. E ela descobriu que era ainda mais
sozinha sem voz. Se procura um refúgio, é por instinto. Viradas do avesso, as
pernas não sabem buscar.
VI
Sofre com o
baque de um sapato no chão. Não acha o seu terraço, e o que é alto parece ficar
mais longe. Nunca mais voltará ao real quarto. Mais sapatos soam no chão como
trovões, cada um faz um barulho diferente e marca de diversas maneiras a
calçada. Os saltos a deixam aos pulos a princípio, mas logo se acostuma. Olha
em volta as pernas e percebe que são as partes mais anônimas de um corpo. A
maioria não sabe se expressar, a não ser a partir da velocidade ou suavidade da
pisada. Quando se está perto do chão, nenhum passo alheio é suave. Todos
invadem. Iz não sabe quando foi que se tornou tão minúscula. Foi se dobrando
pedacinho por pedacinho feito um origami, até ficar do tamanho de uma formiga,
mas sem o propósito das formigas. Os caminhos são mais longos para quando se é
diminuto. O rosto dos outros não é mais visto, e se por ventura algum é
vislumbrado, parece gigante e grotesco. Iz olha em volta para ver se é a única
perto do chão, e entende que sim. Tudo que vê são sapatos e botas. Os ruídos
das vozes se misturam às trovoadas dos calçados – ela tenta mais uma vez, mas
não consegue palavra.
VII
O caos dos
calçados é pior do que o chute derradeiro. Mal sentiu quando esse veio. Viu-se
impulsionada. Deslizou por sobre os pés. Não teve tempo de chorar as violências
– eram tantos pés. Eram tantos pés e o que fazia ali pequena e simples, pequena
e sem voz, pequena e sem barulho em meio ao barulho dessa marcha? Todos os pés
têm um nome. Eles se emaranham mas não se perdem. Iz teve um nome um dia, antes
talvez das inversões. Iz no momento é minúscula demais para caber um nome
dentro de si. Ela cabe em qualquer nome que lhe derem, cabe num cisco de nome.
Mas não um que se esprema a ponto de ela guardá-lo. E se houvesse, ela não tem
voz para dizê-lo. E se houvesse, não seria capaz de se deixar pronunciar a nenhum
dos pés. Deixa-se arrastar para longe pelo chute derradeiro, que não, não é
pior que o caos dos calçados em volta.
VIII
iz sem
nome, só um codi iz desaparecida nos ruídos e nos guizos iz sem voz. iz no
mundo sem iz na rua sem iz cidade iz vai se esvaindo iz grudada no vidro
esmagada iz na terra iz na praça sem nome da cidade sem nome iz sem raiz nem
riso iz sem música no ouvido iz perdida na rua queria iz cantarolar um samba
que fosse iz queria cantarolar um nome iz queria um caminho pra fora daqui.
IX
É do tamanho
de uma poeira quando levanta a cabeça. O mundo todo é tão grande e perto que
não consegue vê-lo. Diminuída, dobrada em mil dobraduras enxerga tão menos
porque vive o detalhe. E é no detalhe que enxerga uns olhos. No meio do verde
disforme, folha, grama, esquecida de formiga, muito muito menor que uma formiga
olhos tão anônimos quanto. Tão sem ruído aquele outro. Iz ainda tem olhos. Ela
não teme nenhum olho que possa ver. Aqueles olhos não pisam com saltos. Imóvel,
não invade nem é invadida. Sem palavras, uma presença. Se entendem de olho,
enxergam no outro o que despossuíram. Enxergam sem ruído. Silêncio. Cílios. São
tão vivos que piscam. Os olhos outros apontam acima. Há quanto tempo Iz não
lembrava do teto – as árvores escurecem e ela encara o céu da copa cerrada da
floresta. Os olhos outros já não estão, sumiram-se nas outras vegetações,
talvez encontrados de um nome ou de música. Iz entende. Já não é tão diminuta.
Acha até mesmo fracos os calçados. Deita-se e encara o teto, as listras mal e
mal vistas no pvc.
X
No avesso
do avesso, com medo, Iz canta o nome reencontrado. Arrepia-se dos calçados das
ruas, abraça o corpo que sente crescer de novo sobre si. Faz o esforço de fechar
os olhos e ainda permanecer na cama. Fecha os olhos para em silêncio
redescobrir os jorros.