quarta-feira, 31 de maio de 2017

Davi

          Não posso abrir esse livro, eu disse a ele. Não vou suportar virar-lhe as páginas, fingir que não vi cada uma das ilustrações que mesmo percebendo de relance, mesmo nem olhando para elas, consigo reconstituir com exatidão. Tenho medo dos rostos das imagens e daquilo que elas lembram. Já basta o que eu não consigo esquecer. O texto – eu não precisaria mesmo abrir uma página sequer desse livro – o texto eu sei de cor, é como se estivesse gravado em mim. E me pego de madrugada ou então durante o banho recitando sem querer, como quem imagina diálogos, como quem planeja discursos, eu trago inteiro o livro e apresento ao quarto, ao banheiro. Não pensa que eu queira, pus fogo ao meu exemplar. Mas ele está todo em mim, incrustado, tatuado. Então não me peça para abrir o livro, como se olhar de novo as imagens ou esse texto fosse me fazer purgar os meus traumas, fosse me libertar. Ninguém sabe o que aconteceria, eu não quero saber, se abrisse o livro, eu não quero saber.
          Só Davi saberia. Porque ele sempre sabia de tudo, e da maneira mais inocente. Ás vezes, após ler o livro e ver que ele ainda não dormira, eu pedia-lhe conselhos. Tolamente, eu sei que parece. Eu falava de um e outro problema – eu sempre tenho um novo problema – e pedia que ele me dissesse o que fazer. Ele dava soluções óbvias e disparatadas, mas tão boas de ouvir, como se todos os conflitos fossem fáceis e nada nunca pudesse me impedir aquele sorriso de estar lendo a Davi no fim da noite. Eu interpretava suas ideias como um oráculo, como se mesmo não fazendo sentido à princípio, tivessem algum significado profundo para mim. Acho que ele teria sido um sábio. Eu, que nunca tive vocação para a sabedoria, me contentaria em ser a mãe do sábio.
          E nem isso. Por meses tentei descobrir o porquê desse livro. Se era algo na história, nas ilustrações, se havia em uma frase um sentido que eu não captasse, porque após passarmos por esse, sempre voltávamos a esse. Alternávamos com outros, mas esse sempre estava ali na estante, para as noites mais frias ou os problemas mais insolúveis. Às vezes ele dormia na metade da história, mas eu sempre ia até o fim. As madrugadas de casa se acostumaram ao som da minha voz. Eu lia um pouco para ele, um pouco para mim, observando-o dormir, os crespos caindo por cima do rosto, a boca aberta. Ele dormia calmo, mas espichado, como se estivesse se oferecendo por inteiro à cama, ao sono. E eu continuava lendo até chegar ao derradeiro ponto. Desligava a luz, dava-lhe um beijo e saía, a minha voz ainda ecoando.
          Depois ainda procurei no livro o mesmo sentimento, mas não houve. E meus problemas também foram se acumulando, não havia oráculos. Agora ele me oferece esse livro, quer que eu o abra e leia nessas noites em que não consigo dormir. Quer que eu me confronte com minhas dores. Mas não adianta, é sempre uma dor diferente. Mantenho na casa tudo igual e à noite me abraço às minhas perdas. Ele me diz que estou afundando, e talvez sim, mas não há Davi que ajude. Então me resto na cama, espichada, e me ofereço ao sono.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Esquecimento

    As palavras não avançaram aos ouvidos de forma encadeada. Não há tradução de cada pedaço da frase, mas o conjunto se sobressai. Não é preciso mais que dois segundos para dizê-lo. Sendo só três palavras – e palavras curtas, monossílabas e dissílabas – poderiam ter sido esquecidas por uma interferência no telefonema ou abafadas por uma tosse. Mas, da garganta de onde saíram, conseguiram ultrapassar os quilômetros de distância e vibrar no rosto daquela que tossiu e respondeu eu também. Muitos sermões de horas já foram esquecidos completamente, é possível ler um livro inteiro e depois não se lembrar de nenhum pedaço, mas três palavras às vezes duram anos. É sempre possível voltar a elas algum dia por vontade ou descuido ou masoquismo. Ela volta às vezes. Ela se pergunta se existiram de fato.
    Aquela foi a única vez – mas foi o aval para que ela dissesse mais vezes eu também, mais vezes não muitas. Ele nunca mais disse. Ele nunca disse pessoalmente. Mas ela acreditava no olho – ele tinha esse olho irônico, áspero que ela tanto gostava principalmente por senti-lo tão pouco áspero quando havia esse estado de mornidão entre alguns beijos. Era como os pregos reunidos a formar uma cadeira onde se sentasse, o ronronar de um tigre que não se quisesse domar. Ele olhava com aquele olho quente e ela sabia que, mesmo que ele não mais dissesse, estava ali. Não reparou desde quando sabia disso, embora fosse muito antes da ligação. Ela sabia, simplesmente. E por mais que a voz dele não expressasse nenhuma doçura, pelo corpo ela sabia, pelo olho. E a confirmação não acrescentou mais certeza, mas deu-lhe a possibilidade de responder que sim, ela também. Deu a possibilidade de dizer mais vezes sem sentir perder sua dignidade, sem se atirar sozinha. Mesmo que ele não repetisse, ele havia dado o primeiro tiro.
    Ela tinha certeza em tudo dele. Sabia que era brutalmente honesto, beirando a insensibilidade. Sabia que era complexo e em verdade incompreensível. Se se permitiu criar certezas a respeito dele foi por hábito, erro de cálculo ou amor. Quando ele terminou, ela não pôde ver o olho. Era por mensagens – sucintas, controladas. Não sabia se o áspero estaria condensado em algo quente, se ainda seria possível sentar nos pregos – imaginava os olhos de gelo, quase malignos. Ela perdeu algumas certezas, admitiu as quedas e teve ódio. Abandonou o jogo por minutos, esqueceu a regra dos tiros e cobrou-lhe o amor. Ele pediu calma. Disse que nunca houve amor. Um gosto, quem sabe. Ela cobrou o esquecimento, engoliu qualquer soberba, mencionou o telefone e as palavras que houveram dentro dele meses passados. Ele nem lembrava, disse, ele nem amava, disse. Ele estava fora dela. Era hora de encerrarem-se certezas e frases longas ou curtas.

sábado, 27 de maio de 2017

No avesso

I

Iz não se importa se as luzes estão apagadas, ela passa pelo interruptor sem tocá-lo. Iz já não se importa com muita coisa. O corpo reconhece a cama – abraçam-se carne e colcha. As coxas desvelam o lençol. Deitada, encara o teto que imagina na escuridão de acima. Pratica não saber o que sabe, não se encontrar onde a mente diz estar, e de repente o escuro é não o escuro da casa mas o escuro de uma floresta de copas tão cerradas que a luz da lua nem penetra e ninguém agora sabe o que é árvore e o que é noite. Ou então está bem no meio de um rio. Se estendesse os pés para fora da cama não sentiria as lajotas frias, mas o gelo da água em que desapareceria sem deixar vestígios. Pode sentir um arrepio do líquido que a envolve, negro da noite. A lua reclusa. Só a cama de Iz é que flutua. Poderia até flutuar em meio ao nada – o mundo inteiro desaparecido e apenas ela tão ela junto à cama e à angústia. Vagando. Mas ela não flutua. Tudo é sempre sólido. Os olhos já se acostumaram ao escuro do quarto que agora já não é escuro, onde agora ela vê o contorno do teto, enxerga as listras no pvc. Conseguiria manter-se imaginando se fechasse os olhos. Criaria o mundo de novo, líquido, flutuante e de mistérios. Mas é melhor mantê-los abertos. A cama não flutua mais, e ela não dorme. Essa história não começa em um sonho.

II

Nem começa, na verdade. Já vai saltando como sem saber por onde ir. Iz perdeu-se em meio aos lençóis. Não conseguiu dormir, precisou virar a noite e encontrar o seu avesso. Ela ainda não sabia a cor do avesso da noite. Ela ainda não sabe porque não aprendeu a ver aquilo que só sente. Mas o avesso estava lá. Ela sentiu se rasgando. Em um pedaço da noite estava a olhar o teto, cada vez mais claro conforme os olhos iluminavam. Em algum momento estava lá. Estendeu a mão e pôde tocá-lo, logo deitava-se pela superfície do teto e olhava o quarto que lhe caía do corpo. Acima sentiu o acréscimo de nada, e o nada a envolvia mais conforme ascendia. Adiante, sempre adiante na noite. Pensou que em um instante esbarraria em estrelas, mas permaneceu, a cidade a ficar para trás. Clara, reversa. Em cima da cidade não há céu, mas outras cidades espelhadas onde agora é dia. Chega no teto de onde nunca partiu e volta para onde não esteve. Na cama, nova e velha, está de novo a encarar o teto. Mas tonta, tentando reeducar o sangue que insiste em fluir para a cabeça. Não precisa se levantar para saber que do lado de lá da porta ninguém sabe que esse é o lado avesso.

III

A cidade toda é um quebra-cabeça em aberto. Tudo parece desencontrado de Iz para fora. A casa não passa o sentido da casa. As paredes do quarto já não são possíveis de ler como eram antes, mudaram algo na textura. Iz estende-se na cama e olha em volta. Algo falta, os detalhes sobram. Os móveis em volta são resto, porque a ausência, porque silêncio. A sala é igual, mas não é a mesma. A casa não é mais casa, engoliu o calor que tinha e não exala cheiro nenhum. Para além das portas, nada muda – o avesso impessoa tudo. Iz tenta encontrar nos canteiros, na praça da cidade, onde um dia talvez houvesse algo que se visse. Iz olha as placas, entra na igreja, procura-se no mapa. A cidade é sem dúvida a mesma, mesmo se espelhada. Tudo está no seu lugar, inclusive Iz, dando os passos que daria num mundo que não fosse seu reverso. Talvez tudo se encontre ainda mais organizado do que antes. Ela está nos lugares onde sempre esteve. Só não sabe aceitar essa ausência estranha em todos os cantos. Algo por debaixo dos passos está suspenso ou desfeito. Tudo é flutuação.

IV

Ruídos. As pessoas invadem o dia. Ela espera que dos passos que chegam junto aos dela, assim como daqueles que lhe são contrários, escapem fragmentos de sentido. Ela quer ouvir as modulações das vozes e perguntar para algum passante de voz mais calorosa o que falta, qual é a ausência na cidade dos avessos – por que tudo é a mesma velha ausência. Ela aguarda pela voz mais próxima para abraçar-se a sua. E ouve, ouve com o corpo inteiro. Ruídos. Todos que andam parecem falar ao mesmo tempo. Alguns entre si, outros no celular, outros gritam por dentro, todas as palavras se misturam na assembléia. Ela agora corre por entre as vozes, se aproxima até ficar íntima dos ruídos, mas não distingue nada. Todos os outros são só sons, nenhum significado. Ela quer falar, mas tem medo. Os ruídos são muitos, os ruídos ultrapassam o cimento da cidade, a cidade vai rachando. Iz quebra junto. Sente que apodrece correndo e parada no centro da cidade, enquanto olha e ouve, mas não escuta, não diferencia voz que lhe acompanhe por debaixo do barulho. Todos os ruídos estão sozinhos – eles criam a ilusão de um conjunto, mas são feitos de um pigarro, uma risada, um grito que vêm de uma garganta por vez. Todas as vozes estão sozinhas, é somente o silêncio que se compartilha. É pena que no barulho não possa haver silêncio e, consequentemente, não há voz que se distinga. Todas se atravessam simultâneas. A náusea que Iz sente obriga-a a parar e restar. Encosta-se em um poste e tenta lembrar alguma canção. Qualquer uma que a ajude a saber de novo como que se usa voz.

V

Corre para um refúgio desse caos. Corre para algum banco de algum terraço de algum prédio bem alto - para sumir. Para chegar perto do lado certo desse avesso, escondido em algum instante do céu. Lá talvez consiga. Em algum lugar talvez volte o senso, a voz. Encostada em um poste dos mais cinzas ela cantou uma voz que não saiu. A melodia vinha de dentro e insinuava-se nos lábios, mas ao sair, mais ruído a se somar aos ruídos. Tentou cantar baixinho para si mesma, mas não houve voz. De barulho tornou-se em nada, desapareceu em um pensamento do dito. Abriu a boca e não saiu sussurro ou grito. O pensamento ainda dizia, ainda diz, pela cidade, mas a fala não veio, a canção não veio. E ela descobriu que era ainda mais sozinha sem voz. Se procura um refúgio, é por instinto. Viradas do avesso, as pernas não sabem buscar.

VI

Sofre com o baque de um sapato no chão. Não acha o seu terraço, e o que é alto parece ficar mais longe. Nunca mais voltará ao real quarto. Mais sapatos soam no chão como trovões, cada um faz um barulho diferente e marca de diversas maneiras a calçada. Os saltos a deixam aos pulos a princípio, mas logo se acostuma. Olha em volta as pernas e percebe que são as partes mais anônimas de um corpo. A maioria não sabe se expressar, a não ser a partir da velocidade ou suavidade da pisada. Quando se está perto do chão, nenhum passo alheio é suave. Todos invadem. Iz não sabe quando foi que se tornou tão minúscula. Foi se dobrando pedacinho por pedacinho feito um origami, até ficar do tamanho de uma formiga, mas sem o propósito das formigas. Os caminhos são mais longos para quando se é diminuto. O rosto dos outros não é mais visto, e se por ventura algum é vislumbrado, parece gigante e grotesco. Iz olha em volta para ver se é a única perto do chão, e entende que sim. Tudo que vê são sapatos e botas. Os ruídos das vozes se misturam às trovoadas dos calçados – ela tenta mais uma vez, mas não consegue palavra.

VII

O caos dos calçados é pior do que o chute derradeiro. Mal sentiu quando esse veio. Viu-se impulsionada. Deslizou por sobre os pés. Não teve tempo de chorar as violências – eram tantos pés. Eram tantos pés e o que fazia ali pequena e simples, pequena e sem voz, pequena e sem barulho em meio ao barulho dessa marcha? Todos os pés têm um nome. Eles se emaranham mas não se perdem. Iz teve um nome um dia, antes talvez das inversões. Iz no momento é minúscula demais para caber um nome dentro de si. Ela cabe em qualquer nome que lhe derem, cabe num cisco de nome. Mas não um que se esprema a ponto de ela guardá-lo. E se houvesse, ela não tem voz para dizê-lo. E se houvesse, não seria capaz de se deixar pronunciar a nenhum dos pés. Deixa-se arrastar para longe pelo chute derradeiro, que não, não é pior que o caos dos calçados em volta.

VIII

iz sem nome, só um codi iz desaparecida nos ruídos e nos guizos iz sem voz. iz no mundo sem iz na rua sem iz cidade iz vai se esvaindo iz grudada no vidro esmagada iz na terra iz na praça sem nome da cidade sem nome iz sem raiz nem riso iz sem música no ouvido iz perdida na rua queria iz cantarolar um samba que fosse iz queria cantarolar um nome iz queria um caminho pra fora daqui.

IX

É do tamanho de uma poeira quando levanta a cabeça. O mundo todo é tão grande e perto que não consegue vê-lo. Diminuída, dobrada em mil dobraduras enxerga tão menos porque vive o detalhe. E é no detalhe que enxerga uns olhos. No meio do verde disforme, folha, grama, esquecida de formiga, muito muito menor que uma formiga olhos tão anônimos quanto. Tão sem ruído aquele outro. Iz ainda tem olhos. Ela não teme nenhum olho que possa ver. Aqueles olhos não pisam com saltos. Imóvel, não invade nem é invadida. Sem palavras, uma presença. Se entendem de olho, enxergam no outro o que despossuíram. Enxergam sem ruído. Silêncio. Cílios. São tão vivos que piscam. Os olhos outros apontam acima. Há quanto tempo Iz não lembrava do teto – as árvores escurecem e ela encara o céu da copa cerrada da floresta. Os olhos outros já não estão, sumiram-se nas outras vegetações, talvez encontrados de um nome ou de música. Iz entende. Já não é tão diminuta. Acha até mesmo fracos os calçados. Deita-se e encara o teto, as listras mal e mal vistas no pvc.

X


No avesso do avesso, com medo, Iz canta o nome reencontrado. Arrepia-se dos calçados das ruas, abraça o corpo que sente crescer de novo sobre si. Faz o esforço de fechar os olhos e ainda permanecer na cama. Fecha os olhos para em silêncio redescobrir os jorros.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Sair no vento

Mais uma almofada. Mais uma almofada nas costas para que o sofá fique bem confortável. A almofada, e mais o cobertor, e um pacote de bolachas para matar a fome. Toda essa fome que a consome e que era fome de mundo, mas o que há ali não é mundo, são bolachas, então come. Quereria se levantar e olhar na cara do pai e na cara da mãe e dizer: “Agora chega. É agora que saio no vento, o início do meu ato”. Mas no sofá permanece, e cala o grito. Queria só dizer que já ia. As crianças a chamaram para brincar, mas agora não são mais crianças, têm a sua idade, 16, 17, e já não chamam, mas estão sempre ali, na rua, no vento. Presenças barulhentas que obrigam a família confortável a fechar as janelas. Porque é sábado, e é noite, e há sempre muitas coisas a serem feitas num sábado de noite. Mas todos os atos de um sábado só não iniciaram porque ela não iniciou nada, e não está lá, ela está bem Carolina, vendo a vida passar à janela, mas nem há janelas, há apenas uma televisão. O pai levanta o volume – parece que para calar-lhe os pensamentos – está dando Zorra Total, e a Zorra lhe entra pelos ouvidos fazendo-a sentir-se algo próximo de humilhada.
Porque dessa vez sentiu o chamado, e espera a hora de levantar e dizer que precisa ir, mas as bolachas não acabam, e o cobertor enrolado parece lhe apertar o corpo. Ela sente que para ir precisaria dar o impulso e sair rolando mesmo correndo o risco de sufocar. Eles estão sempre lá quando ela passa voltando para casa. E eles sempre olham porque jovens olham profundamente as coisas. Ela desvia todo dia e segue a marcha em seu passo de velha. Mas, talvez por recém ter feito 16, talvez porque os jovens estivessem mais simpáticos, talvez por a lua estar bem cheia, hoje ela sentiu o chamado mais forte e cogita ir. Sabe que eles não ririam, que aceitariam aquela espécie de filho pródigo às avessas, no momento em que saísse de casa de corpo disposto aos males do mundo, porque o que mais desejava na vida eram os males do mundo.
Os pais, pacatos, não notam o desconforto. Ela é menina prodígio, nota A, modelo comportamental, mocinha de sala de estar, que come de boca fechada e fala pouco. Mas agora ela está a gritar consigo mesma e lhe implora que levante e siga adiante. Os gritos não emergem da boca fechada que no máximo se contorce. A perna não levanta um milímetro. Mas por um instante ela acha que vai. Vai se desvencilhar do cobertor, descartar as bolachas e ir enfim curar sua fome. Vai se levantar sem dizer nada e se vestir e se calçar – não vai pentear os cabelos porque pretende viver no vento – e vai dizer enfim aos pais: “vou sair, e não me esperem hoje em casa”. E então vai sair, no frio da rua, e vê-los, e vai conversar, rir feito doida e dançar pela rua. Com eles vai cantar até de madrugada, ficar muito bêbada e comemorar o nada. Vai ser livre, e enxergar o mundo que há por detrás das paredes. Vai sim. E o mundo, o mundo vai se curvar em face de tamanha juventude, e ela nunca mais será a mesma, vai pintar os cabelos, fazer uma tatuagem e começar a agir da forma que bem quiser.
Mas em um estalo ela pensa que nem sabe bem o que quer. O cobertor ainda enrola as pernas, e ela sente que não pode ir. É inverno demais, está frio demais. O vento iria desmanchá-la. Além disso, nem possui roupas ou sapatos para enfrentar o mundo. E nem tem voz.  É possível que chegasse e espantasse os outros com seu silêncio, e os emudecesse também. Melhor não arriscar, poupar o mundo. Ela sabe que só tem a fome e que isso não é o bastante. Então engole mais uma bolacha e se enrola bem no cobertor. Outro dia vai, vai comprar umas roupas, arranjar uma voz, e depois vai. Um outro dia sairá na rua.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Pausa para sangrar

Nesses dias em que não há certeza alguma, apenas um medo, e o ódio parece que se espalha feito um vírus a esperar em cada esquina, a palavra some. A palavra se faria necessária, mas ela some da garganta, das canetas. Ás vezes não sabemos nem por onde começar a sangrar. E quando se começa, não se sabe o que estanca a hemorragia.
A palavra vai se tornando maior em seu silêncio de luto, e talvez um dia ela saiba dizer. Mas hoje, apenas dói.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

voz

brinco de verbo

farta de brincarem de mim.

mastigo a não ser mastigada


eu piso em palavra

mas com carinho – como quem esmaga as uvas

e então bebe o vinho

com carinho e pés descalços

porque cansei de pisarem calçados em mim


para que não me calem

sussurro mais alto

e escrevo em meio de página:

PALAVRÃO

um alto-falante verbal


eu sinto, e sinto bem alto

porque cansei de sentirem em mim

por mim com mais barulho que eu

eu choro para não chorarem

minhas dores

rio porque já riram de mim

mas rio suave escorrendo palavras suaves

porque aprendi com os pés nas uvas

e as palavras nuas


eu suo o suor que não permitiram

arrasto bem os versos

para vingar o meu castigo

eu brinco com o verbo

porque não vão brincar comigo

nunca mais


domingo, 21 de maio de 2017

Achados

Desaprendi de apanhar joaninhas. Nunca olhei para elas, estiveram distantes, e eu alheia, era urbana apesar dos campos. Era citadina porque impessoal. Era o outro, porque minha cidade era toda feita de outros. Como se pega uma joaninha? Nunca peguei numa joaninha e nunca deixei que nenhuma me pegasse, tocasse, se fizesse compreender. Joaninhas sempre foram bichos porque sempre fui cinza. E distante. Não, as joaninhas nunca fizeram parte e aparte eu sempre vivi como se me apartasse de verdade, como se fosse menos que um coletivo de joaninhas, eu, inseto do mato preso em potinho, eu de tamanho pequeno, cinza e fria, tão eu, joaninha, sozinha, eu.
Peguei.
Ela circula em meu braço como se fosse eu galho, árvore de mundo perdido. Nem ligo que não seja vermelha, nem ligo para o pequenino de seu abraço, ela dança em meu braço e eu a amo. Chamo seu nome em língua que não existe. Redescobri algo. Reamei febrilmente. Sou febril de afetos ao redescobrir a joaninha, a grama molhada, o parque, o bem-te-vi que não enxergo, uma paz que me comunica algo mais que um braço cinza onde joaninha alguma pousara antes.

sábado, 20 de maio de 2017

O movimento

Ele anseia de corpo inteiro. Inspira como se em um respiro fosse capaz de ingerir o ar entocado em cada canto da casa e em seguida empurra no expiro todo o ar de volta aos seus lugares de origem. O peito que sobe e desce é o único movimento que faz. De resto, só há o movimento das pás do ventilador no teto. O quarto só não pareceria silencioso para ele, que a partir da respiração está no centro do barulho. Sente que nunca mais vai levantar da cama, nem quer. Porque de nada adianta colocar os pés para fora do quarto, da casa, de nada vale sair na praça se não vai criar as asas. Se em lugar algum encontra a liberdade. Por isso permanece na cama, e ansiando. Hoje mais cedo teve um pensamento esquisito, mas de uma forma estranha apaziguador. Precisava desse pensamento para que não fosse até o fim, criou como o último recurso, e se nas pernas não havia esperança, se na vontade não havia impulso que fosse o bastante, era preciso criar uma ideia como a última braçada.
E desde que nasceu o pensamento, seu corpo ainda está no mesmo lugar mas ele sente que já foi até o fundo de si e voltou.
Descobriu o segredo da mobilidade. A ideia era mais ou menos a seguinte: que mover-se não se tratava de uma questão física, corporal necessariamente, podia-se estar fora mesmo sem estar, como com uma música ou livro. Ele era incapaz do mergulho afora, poderia sair da casa, mas as salas, os quartos não sairiam dele, ele não sabia liberdade. Não tinha o tino de se buscar rua afora. Sair não funcionava em seu corpo, então ele entrava corpo adentro. Se ao fechar os olhos como agora conseguia enxergar mares, planetas, pessoas que o amam e brindam, se consegue enxergar qualquer coisa que deseja enxergar é porque todas essas coisas já estão ali. E ali não é imóvel, ele se transporta em um piscar de olhos, pode até ser outro. Como se dentro da respiração houvesse outra liberdade.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O muro

Devem ter sido muito loucos os sonhos dessa noite, porque acordaram em uma cama estranha.
Abriram os olhos ao mesmo tempo e estranharam o cenário. Antes de abrir os olhos inclusive estranhavam o modo como o lençol roçava a pele, os travesseiros afundados pelos próprios crânios, a respiração úmida do corpo do outro. Após abrir os olhos, estranharam o quarto, as paredes, o chão. Olharam um para o outro e se estranharam. Embora não esquecessem. Assim como reconheciam o quarto e suas paredes, a cama com seus lençóis, travesseiros e respirações, reconheciam um ao outro e se sabiam. A bem da verdade, eles se sabiam como marido e mulher, embora por um instante não se soubessem como humanos, não possuindo aquele apoio tácito de duas coisas que andam sobre dois pés. Eles se conheciam, mas estranhavam, e embora fosse tudo igual era tudo diferente.
Devem ter sido loucos os sonhos, porque eles não estavam agindo normalmente. Até o despertador se inibiu de tocar. Ou é domingo.
Ninguém se espreguiça, nem boceja, nem reclama de mais um dia como qualquer outro dia de fazer tantas coisas que não nos deixam fazer nada de nosso mesmo, ninguém bufa, ninguém checa as últimas mensagens. Agora ele abriu a janela, mas a janela encara um muro cinza, e eles deitados na cama olham o muro cinza como se fitassem uma montanha. Ninguém disse uma palavra e ambos sabem que está tudo estranho. Mas não se movem, até os cobertores se reprimem. Os objetos fazem silêncio para eles se pronunciarem, mas ninguém fala, então criam silêncio em cima de silêncio, como uma torre de lego.
Devem ter sido loucos, porque eles se esqueceram que precisavam caçar alegria.
Nenhum busca rir por algum motivo torpe, nem se sorriem falsamente para acreditar felicidade. Na estranheza, não sabem falsear. Apenas ficam encarando o muro cinza e não têm obrigação nenhuma de rir e dizer que precisamos, meu bem, pintar esse muro de branco, porque dá no mesmo. Ambos pensam, é verdade, em quebrá-lo a machadadas, pelo prazer de uma destruição e de nunca mais ver um muro cinza na janela, e não reprimem os pensamentos hoje porque hoje não reprimem nada. Não queriam dizer nada porque palavras são só palavras, mas se quisessem, perguntar-se-iam – porque o relógio rodou tantas vezes que a verdade se perdeu – se foram eles os mesmos que projetaram o muro, que desenharam o muro, que o ergueram.
Devem ter sido. Foram loucos esses sonhos de muros quebrados e lençóis arruinados.
Ao acordar, tinham nas narinas um cheiro de destruição, cheiro que por intermédio do concreto, do cimento, se assemelha e se confunde tanto ao cheiro da construção – em que nenhum dos dois é bom, mas penetram o pulmão. Eles tinham o cheiro e tinham o plano, criado desvozeadamente em meio ao tom confessional do estranho. Levantaram-se como em um ritual, pegaram as picaretas de debaixo da cama, pularam a janela. Na destruição do concreto, um desejo de abstrato, e que tudo passasse de estranho à qualidade de outra coisa que não poderia ser o normal e conhecido – porque o normal viraria o estranho sempre de novo e de novo, como os mortos que retornam todo ano às suas casas – mas teria que virar uma outra coisa. Não o avesso do estranho, mas seu produto, um origami. Uma nuvem de poeira e finalmente um riso e uma exclamação em meio a destruição do concreto, vocês devem estar loucos.
Devem. Deviam ter sido loucos os sonhos por trás dos muros. Voltando à cama, enxergavam enfim a floresta. Era verde, viva e cheia de bruxas.

teomedicina

no princípio 

criou deus luvox e neurox

a terra era sem frisium e vazia; não havia zoloft por sobre a face

do abismo; e o espírito de

deus se movia por águas 

nada tryptanólicas


disse deus: haja psicosedin, houve lorax

viu deus que era bom o daforin e fez  a

separação entre

o valium e o cloridrato de amitriptilina;

chamou à luz zyparox e às trevas velija

e de tolrest e stablon se fez

o dia primeiro.


disse também deus:

faça-se o firmamento no meio de dulorgran

e separe uns aropax de outras águas

e fez deus o bup e dividiu as águas que

estavam por baixo do dogmatil

das que estavam por cima do ludiomil

e chamou deus ao aurorix céu

e de ixel e iperisan

se fez o dia segundo.


disse também deus:

os nortex de debaixo do céu

ajuntem-se num mesmo lugar

e o elemento anafranílico

apareça, e assim se fez.

chamou deus paxtrat

stablon e ao dienpax

kiatrum

e viu deus que isto era bom.

e disse também deus:

produza max pax tranxileno

que dê venlafaxina

e celappans muito

frutíferas

e de exodus e tolvon

se fez o dia terceiro.


disse também deus:

mirtazapina moratus eufor

unimiprax prozac, efexor

valdoxan venlift venlaxin

rohm pnol elum orcadil

lorax pasalix: zyfloxin

cloxazolam anafranil

roxetin

no quarto dia.


disse também deus:

benepaxparox

de eva e de adão

denyl sulpan sertralina

quinto, sexto, sábado

clomipramina

e então viu deus

todas as coisas criadas

e cansou e sonhou

com o nada.


Arrepio

Não, eu não sinto frio algum. Já disse a todos que me perguntaram, e vou continuar a dizer. Sei a sensação do clima penetrando a carne, já senti invernos. Mas é primavera, todos sabem. Não há mais gelo e eu não sinto frio, como eles também não sentem. Mas insistem, empurram para mim suas ideias de como sinto, mesmo que eu diga, e digo outra vez, que por uma das poucas vezes na vida o clima está dos mais agradáveis. Eu não sei, e pelo visto nenhum deles sabe, explicar o arrepio. Desde que comecei a senti-lo, tentei criar motivos, causas, tentei analisá-lo como se analisa os simbolismos em um livro. Os médicos olharam e se esforçaram a dar uma razão que fosse física e curável. O cura olhou e falou algo sobre o diabo. Eu não acredito em nada, mas assisto a meu braço, minha coxa, com curiosidade. O modo como cada fio se mantém estendido, esse jeito da pele se encher de bolinhas. Mas o braço está quente, e não tenho medo de nada, e nada ultimamente me excita. Não sei a explicação, ninguém sabe. Já faz dias que estou nesse arrepio perpétuo, que os pelos não mais se curvam, eu durmo acreditando uma mudança em estado, mas acordo e eles permanecem bem onde estavam. Eu digo e insisto que não sinto frio algum. Não é sobre temperatura a razão, embora seja o que querem me imputar, por esse sempre desejo de racionalizar algo que talvez não tenha um porquê. Estou quase me convencendo a não mais procurar saber, porque sei que a todos que eu perguntar, vão querer me dar sua opinião mais óbvia em estoque, vão querer dizer a solução que pareça mais sábia, para então eu ser grata aos seus diagnósticos. Recomendaram-me já acupuntura ou terapia. Mas eu sigo encarando meu arrepio e me acostumo, a pele sempre à flor. Mantenho meus arrepios quase com um certo amor, e se em alguns momentos eu tremo toda a região de pescoços e costas, como se alguém subitamente me assoprasse  na epiderme, como se houvesse a mais suave das mãos a fazer uma cócega, eu aceito como um destino. Eu digo outra vez que não é de medo ou de frio, eu abraço como um dom, uma outra espécie de sensibilidade o meu arrepio.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Loucos.

Na parada, aguardam o ônibus derradeiro. Todos conectados pelo pesar dos olhos sonolentos, pelo ritmo das olhadas no relógio, pelo medo do hesitar dos ônibus. Não se vêem nem se falam, todos os olhos nas chegadas, toda a impaciência para os ônibus que não são seus ônibus. Desconectados de vida, mas alinhados, cada um cumprindo seu propósito de esperas, mantendo o equilíbrio da parada.
Chega o louco.
Percebem-no pelos gritos que destoam na manhã sem voz. Imediato desconforto domina o ambiente e acusa o louco de ofender com seus gritos a fala una do trânsito. Mas o louco não nota que sua fala desvaira a sonoplastia urbana. Ninguém vai avisá-lo de sua inadequação. Ele não se dá conta do desequilíbrio. Ninguém vai chamá-lo a dizer que sua voz não é apropriada.
Os rostos da parada se movem dissonantes, perdem o foco. Perderam a tênue unidade do objetivo. Uns olham para o louco com pena, outros com desaprovação, alguns veem, riem e cochicham. Uns tiram os fones de ouvido para ouvir o que o louco diz, uns colocam os fones para não ouvir o que diz um louco. Uns não olham – mantêm-se inexpressivos fingindo que não vêem, fingindo que não ouvem. Ninguém percebe o mesmo louco: todos se desvelam um pouco. Alguém perdeu o ônibus por alheamento. É o caos.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Linguagem

A língua que ela usou com ele já morreu, é estéril, não gerará frutos, não respirará oxigênio. A língua dos sentidos dela é morta. Ele não ouviu, corria um rio ao lado de seus ouvidos e foi mais atrativo que a terra seca e rachada que ela apresentava. Terra sem adubo que morreu, língua morta, sem sentido. Não importa se latim ou grego antigo – ou o mais perfeitos dos francês Balzac – não ecoou. Soou a enunciação e não bateu na carne, ressoa no vácuo. Era a árvore que não caiu na não-floresta porque ninguém não viu. Ela partiu e ficou umas palavras mais muda – as palavras se enterraram na terra e sementaram macieiras silenciosas. Em cada maçã uma palavra dela, morta como um verme partido ao meio. A língua dela era semente morta. A macieira não existe. O não-ouvinte não existe. A língua dela é morta e não existe, pois ela é morta e não existe, pois ela fui eu quem criei para chorar o meu silêncio.

manequim

se eu digo que escrevo poesia

ele diz que linda

ele diz que orgulho

faz uma reverência

uma mesura


se eu digo que escrevo poesia

ele se deleita

no sensível que imagina

dos poemas dedicados

minha poetisa, ele declama

e quer beijar a sylvia plath


quando eu digo que escrevo poesia

ele sorri, ele se eleva

ele se orgulha em me ter, mulher

mas nunca

nunca ele me pede para ler


A fala

Após os gritos, é muda a resposta dela. Silencia a voz e fala pelos poros, pelos modos, pelos olhos. É muda, mas nunca nula a resposta dela. Isso é o que enfurece os comandos, desestabiliza os berros dos homens. Eles são e se veem gigantes, pisam com as imensas botinas ruindo o chão.
Quando chegam perto, ela treme, mas permanece firme naquilo que há de mais interno ao corpo, aquilo que se deixa ver aos olhos. Eles gritam barbáries, martelam os muros, mas nada fura o bloqueio. Ela nunca responde. A voz lhe é mais íntima, não merecida aos ouvidos que não buscam ouvir, mas mastigar e cuspir tudo que ela dissesse.
Se dissesse.
Ela é como uma estátua – de longe poderiam confundir com uma boneca, um manequim, mas ela não cede – para derrubar só com todos os golpes possíveis. Ela desmorona em algum momento, mas mesmo enquanto se desfaz, os pedaços permanecem sérios no encaro.
Ás vezes eles ainda param, por mais que não desejem parar. Os olhos dela não são os mais corajosos ou intrépidos, mas há algo nele que se mantém. Os olhos deixam ver tudo em que lhe dilaceram. Não afetam invencibilidade. Nos olhos estão todas as feridas e ela dentro das feridas, mas sempre ela, tão ela, isso eles não matam.
Ela estátua, só olha os gritos. As ordens chegam usando botinas mas não afetam tanto quanto acreditariam, metade do medo entra no corpo mas a outra metade ricocheteia nos olhos e lhes pega inteiros, desprevenidos, na boca do estômago. Sentem medo em seus fundos. Guardam sempre algo mudo nas vozes que ficam cada vez mais altas. Por mais que ordenem ela não responde, mas responde muito mais na forma como se ergue e olha, no mais perfeito interior da íris, onde o que ela fala encontra os vazios de fala deles e ela então discursa como uma estátua.