quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Porta-retratos nas estantes. Ela espana a velhice da casa, nos dias em que não tem medo do pó que há em cada coisa. Ela tira o poeira uma vez a cada mês. No resto dos dias, somente limpa o visível e superficial: o chão, onde os sapatos sujos tornam a sujeira em evidência; as louças, parecidas com o humano em seus banhos diários de renovação, afinal, é pecado receber comida nova em louça que ainda guarde as carcaças de outras. As roupas também precisam de cuidados, para não virarem viveiro de manchas e cheiros do corpo. Mas aquilo que não é da ordem dos rituais necessário das coisas, e aquilo que não é útil para apagar as evidências das pegadas e dos derramamentos, o que é sutil e se acumula aos poucos, os olhos dela geralmente não se preocupam em atentar. A não ser quando chega em dias como esse, em que pode enxergar, cheirar, quase sentir o gosto do pó. Não percebê-los tornaria viver um pouco mais fácil. Mas eles se acumulam, em cima das porcelanas, na madeira das estantes, até mesmo na tela da tv, onde quase cremos às vezes que o movimento dos filmes de ação e jogos de futebol não deixam com que se fixem os restos. Os pós estão onde menos se espera, inclusive nela própria. É por isso que em alguns meses ela tira o dia para espanar o pó das coisas e reclamar de toda essa sedimentação. A poeira é um atestado do tempo que se assenta sobre nós. É preciso tirar os resíduos do tempo com um pano molhado. Assim, quem sabe deixe de sentir na respiração o velho gosto de guardado.

domingo, 7 de janeiro de 2018

trono de ester

eles se envolvem comigo
e logo viram pluma, pó no vento
eu viro flor espinhenta
e não há final ou romance

eles se envolvem comigo

nos expandimos em infinito
convulsões, delírios
e eu acordo estatelada, só
com zumbidos no ouvido

eles se envolvem comigo

eles amam, eles sonham
comem, cospem e morrem
e eu me torno em grama
terra, areia movediça
emaranhada em minhas raízes
afundando
duvidando

eles têm cordas que não usam

eu não choro pelas cordas
afundo como quem transcende
me envolvo em minhas pernas
eles correm, eles bebem
esquecem da textura de minhas mãos
eles transam e casam e morrem
e eu só me envolvo comigo

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Esquecer-me

    Gostaria de copiar palavras de quaisquer escritos antigos para falar de ti. Eu queria achar em cadernos palavras prontas, para não precisar sugar de minhas entranhas aquilo que não está pronto para ser sugado. Eu não estou pronta para ser sugada em memórias que eu sempre torno maiores que eu. Sabe como se apagam as memórias que ninguém deseja? Pense em como tu me apagaste e vai me apagando. Não é preciso máquinas ou citações de Pope, nem é preciso a decisão – o meu problema é que tudo que tento é tão decidido que eu não consigo. Sabe como é que se esquece? Além de não pensar, e aí de novo eu falho e vocês não. Não revolver cadernos e bilhetes antigos também é uma maneira de eles não existirem: nem os guarde, e se os guardar que seja de esquecimento. Assim, eles se perdem mais do que se tivessem sido rasgados ou queimados em ápices. Diz a lenda que se queimamos bilhetes eles nunca mais nos deixam. É por isso que nunca queimo nada, e se as coisas não me deixam eu posso dizer que é por vontade própria e não por desconhecimento de como abandonar-me. Eu nunca deixo nada, e é por isso que eu não te deixo. Eu posso nunca mais te soltar verbo nenhum, e tu não saberá nunca mais o gosto de minha voz, mas a minha presença insiste dentro da simulação de tua presença que guardo dentro de mim. Dentro de mim, guardo simulações de presenças, e a elas eu importo. E então estou bem. Mas não era nada disso que eu ia dizer.

    Eu ia falar sobre o oblívio. Oblívio é uma palavra linda, eu adoro sons de “l” e de “i” e ela parece ser líquida o suficiente para combinar com o esquecimento. O oblívio acontece principalmente para quem não quer nem deixa de querer. Estás indiferente a mim, então vais me esquecer. Eu digo isso me envolvendo a mim mesma como em um cobertor e me dá um prazer. Me esquece, e eu me envolvo, meu corpo se enrola e é sozinho, isso me dá um prazer. Todos aqueles que me amaram esqueceram de mim, e isso me dá um prazer. Isso não me dá prazer nenhum. Ao menos não dito dessa forma. O prazer está só na sutileza, na singularização. Se eu torno em regra geral assim eu chego muito perto de morrer. Eu nunca devia ter dito isso, agora nunca mais vou poder esquecer. Eu vou voltar ao que eu queria dizer, eu só queria dizer como esquecer. E para que digo? Se não há nada mais que eu precise te ensinar sobre o assunto. Eu não sinto tua falta nenhum pouco, meu único dó é que tu não tenhas aprendido a abrir minhas portas, e minha única tristeza é que quando esqueces de mim eu perco importância. E sei que não é necessário, mas eu digo mesmo assim, para atestar minha derrota. 

    Crie outras lembranças em cima das minhas, pegue os mesmos lugares e as mesmas músicas e os mesmos filmes e imprima por cima deles o que quiser, flores, dinossauros. Pegue aquele banco, por exemplo, e leve lá uma bela moça da Colômbia de nome exótico que caberia em qualquer poesia. Leve-a lá, lhe dê um orgasmo e escreva depois um poema. Foram rejeitadas quaisquer lembranças anteriores, nunca existiu um mesmo lugar no passado. Vai ser fácil, tua memória sempre foi fraca perto da minha, é preciso muito menos abalo para que se rompa, pode ser sutil. Leve amigos e salgados para todos os lugares onde pisamos, ache uma sala escura com um piano, é preciso pouco para esquecer. Toque uma música diferente. Estou aqui enrolada com meus cadernos e lembranças, e estou bem, eu nunca deixei de estar bem. Ainda escuto as mesmas canções, embora vez ou outra descubra alguma nova.