Mais uma almofada. Mais uma almofada nas
costas para que o sofá fique bem confortável. A almofada, e mais o cobertor, e
um pacote de bolachas para matar a fome. Toda essa fome que a consome e que era
fome de mundo, mas o que há ali não é mundo, são bolachas, então come. Quereria
se levantar e olhar na cara do pai e na cara da mãe e dizer: “Agora chega. É
agora que saio no vento, o início do meu ato”. Mas no sofá permanece, e cala o
grito. Queria só dizer que já ia. As crianças a chamaram para brincar, mas
agora não são mais crianças, têm a sua idade, 16, 17, e já não chamam, mas
estão sempre ali, na rua, no vento. Presenças barulhentas que obrigam a família
confortável a fechar as janelas. Porque é sábado, e é noite, e há sempre muitas
coisas a serem feitas num sábado de noite. Mas todos os atos de um sábado só
não iniciaram porque ela não iniciou nada, e não está lá, ela está bem Carolina,
vendo a vida passar à janela, mas nem há janelas, há apenas uma televisão. O
pai levanta o volume – parece que para calar-lhe os pensamentos – está dando
Zorra Total, e a Zorra lhe entra pelos ouvidos fazendo-a sentir-se algo próximo
de humilhada.
Porque dessa vez sentiu o chamado, e espera a
hora de levantar e dizer que precisa ir, mas as bolachas não acabam, e o
cobertor enrolado parece lhe apertar o corpo. Ela sente que para ir precisaria
dar o impulso e sair rolando mesmo correndo o risco de sufocar. Eles estão
sempre lá quando ela passa voltando para casa. E eles sempre olham porque
jovens olham profundamente as coisas. Ela desvia todo dia e segue a marcha em
seu passo de velha. Mas, talvez por recém ter feito 16, talvez porque os jovens
estivessem mais simpáticos, talvez por a lua estar bem cheia, hoje ela sentiu o
chamado mais forte e cogita ir. Sabe que eles não ririam, que aceitariam aquela
espécie de filho pródigo às avessas, no momento em que saísse de casa de corpo
disposto aos males do mundo, porque o que mais desejava na vida eram os males
do mundo.
Os pais, pacatos, não notam o desconforto.
Ela é menina prodígio, nota A, modelo comportamental, mocinha de sala de estar,
que come de boca fechada e fala pouco. Mas agora ela está a gritar consigo
mesma e lhe implora que levante e siga adiante. Os gritos não emergem da boca
fechada que no máximo se contorce. A perna não levanta um milímetro. Mas por um
instante ela acha que vai. Vai se desvencilhar do cobertor, descartar as
bolachas e ir enfim curar sua fome. Vai se levantar sem dizer nada e se vestir
e se calçar – não vai pentear os cabelos porque pretende viver no vento – e vai
dizer enfim aos pais: “vou sair, e não me esperem hoje em casa”. E então vai
sair, no frio da rua, e vê-los, e vai conversar, rir feito doida e dançar pela
rua. Com eles vai cantar até de madrugada, ficar muito bêbada e comemorar o
nada. Vai ser livre, e enxergar o mundo que há por detrás das paredes. Vai sim.
E o mundo, o mundo vai se curvar em face de tamanha juventude, e ela nunca mais
será a mesma, vai pintar os cabelos, fazer uma tatuagem e começar a agir da
forma que bem quiser.
Mas em um estalo ela pensa que nem sabe bem o
que quer. O cobertor ainda enrola as pernas, e ela sente que não pode ir. É
inverno demais, está frio demais. O vento iria desmanchá-la. Além disso, nem
possui roupas ou sapatos para enfrentar o mundo. E nem tem voz. É possível que chegasse e espantasse os
outros com seu silêncio, e os emudecesse também. Melhor não arriscar, poupar o
mundo. Ela sabe que só tem a fome e que isso não é o bastante. Então engole
mais uma bolacha e se enrola bem no cobertor. Outro dia vai, vai comprar umas
roupas, arranjar uma voz, e depois vai. Um outro dia sairá na rua.
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