quinta-feira, 25 de maio de 2017

Sair no vento

Mais uma almofada. Mais uma almofada nas costas para que o sofá fique bem confortável. A almofada, e mais o cobertor, e um pacote de bolachas para matar a fome. Toda essa fome que a consome e que era fome de mundo, mas o que há ali não é mundo, são bolachas, então come. Quereria se levantar e olhar na cara do pai e na cara da mãe e dizer: “Agora chega. É agora que saio no vento, o início do meu ato”. Mas no sofá permanece, e cala o grito. Queria só dizer que já ia. As crianças a chamaram para brincar, mas agora não são mais crianças, têm a sua idade, 16, 17, e já não chamam, mas estão sempre ali, na rua, no vento. Presenças barulhentas que obrigam a família confortável a fechar as janelas. Porque é sábado, e é noite, e há sempre muitas coisas a serem feitas num sábado de noite. Mas todos os atos de um sábado só não iniciaram porque ela não iniciou nada, e não está lá, ela está bem Carolina, vendo a vida passar à janela, mas nem há janelas, há apenas uma televisão. O pai levanta o volume – parece que para calar-lhe os pensamentos – está dando Zorra Total, e a Zorra lhe entra pelos ouvidos fazendo-a sentir-se algo próximo de humilhada.
Porque dessa vez sentiu o chamado, e espera a hora de levantar e dizer que precisa ir, mas as bolachas não acabam, e o cobertor enrolado parece lhe apertar o corpo. Ela sente que para ir precisaria dar o impulso e sair rolando mesmo correndo o risco de sufocar. Eles estão sempre lá quando ela passa voltando para casa. E eles sempre olham porque jovens olham profundamente as coisas. Ela desvia todo dia e segue a marcha em seu passo de velha. Mas, talvez por recém ter feito 16, talvez porque os jovens estivessem mais simpáticos, talvez por a lua estar bem cheia, hoje ela sentiu o chamado mais forte e cogita ir. Sabe que eles não ririam, que aceitariam aquela espécie de filho pródigo às avessas, no momento em que saísse de casa de corpo disposto aos males do mundo, porque o que mais desejava na vida eram os males do mundo.
Os pais, pacatos, não notam o desconforto. Ela é menina prodígio, nota A, modelo comportamental, mocinha de sala de estar, que come de boca fechada e fala pouco. Mas agora ela está a gritar consigo mesma e lhe implora que levante e siga adiante. Os gritos não emergem da boca fechada que no máximo se contorce. A perna não levanta um milímetro. Mas por um instante ela acha que vai. Vai se desvencilhar do cobertor, descartar as bolachas e ir enfim curar sua fome. Vai se levantar sem dizer nada e se vestir e se calçar – não vai pentear os cabelos porque pretende viver no vento – e vai dizer enfim aos pais: “vou sair, e não me esperem hoje em casa”. E então vai sair, no frio da rua, e vê-los, e vai conversar, rir feito doida e dançar pela rua. Com eles vai cantar até de madrugada, ficar muito bêbada e comemorar o nada. Vai ser livre, e enxergar o mundo que há por detrás das paredes. Vai sim. E o mundo, o mundo vai se curvar em face de tamanha juventude, e ela nunca mais será a mesma, vai pintar os cabelos, fazer uma tatuagem e começar a agir da forma que bem quiser.
Mas em um estalo ela pensa que nem sabe bem o que quer. O cobertor ainda enrola as pernas, e ela sente que não pode ir. É inverno demais, está frio demais. O vento iria desmanchá-la. Além disso, nem possui roupas ou sapatos para enfrentar o mundo. E nem tem voz.  É possível que chegasse e espantasse os outros com seu silêncio, e os emudecesse também. Melhor não arriscar, poupar o mundo. Ela sabe que só tem a fome e que isso não é o bastante. Então engole mais uma bolacha e se enrola bem no cobertor. Outro dia vai, vai comprar umas roupas, arranjar uma voz, e depois vai. Um outro dia sairá na rua.

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