Devem
ter sido muito loucos os sonhos dessa noite, porque acordaram em uma cama
estranha.
Abriram
os olhos ao mesmo tempo e estranharam o cenário. Antes de abrir os olhos
inclusive estranhavam o modo como o lençol roçava a pele, os travesseiros
afundados pelos próprios crânios, a respiração úmida do corpo do outro. Após
abrir os olhos, estranharam o quarto, as paredes, o chão. Olharam um para o
outro e se estranharam. Embora não esquecessem. Assim como reconheciam o quarto
e suas paredes, a cama com seus lençóis, travesseiros e respirações,
reconheciam um ao outro e se sabiam. A bem da verdade, eles se sabiam como
marido e mulher, embora por um instante não se soubessem como humanos, não
possuindo aquele apoio tácito de duas coisas que andam sobre dois pés. Eles se
conheciam, mas estranhavam, e embora fosse tudo igual era tudo diferente.
Devem
ter sido loucos os sonhos, porque eles não estavam agindo normalmente. Até o
despertador se inibiu de tocar. Ou é domingo.
Ninguém
se espreguiça, nem boceja, nem reclama de mais um dia como qualquer outro dia
de fazer tantas coisas que não nos deixam fazer nada de nosso mesmo, ninguém
bufa, ninguém checa as últimas mensagens. Agora ele abriu a janela, mas a
janela encara um muro cinza, e eles deitados na cama olham o muro cinza como se
fitassem uma montanha. Ninguém disse uma palavra e ambos sabem que está tudo
estranho. Mas não se movem, até os cobertores se reprimem. Os objetos fazem
silêncio para eles se pronunciarem, mas ninguém fala, então criam silêncio em
cima de silêncio, como uma torre de lego.
Devem
ter sido loucos, porque eles se esqueceram que precisavam caçar alegria.
Nenhum
busca rir por algum motivo torpe, nem se sorriem falsamente para acreditar
felicidade. Na estranheza, não sabem falsear. Apenas ficam encarando o muro
cinza e não têm obrigação nenhuma de rir e dizer que precisamos, meu bem,
pintar esse muro de branco, porque dá no mesmo. Ambos pensam, é verdade, em
quebrá-lo a machadadas, pelo prazer de uma destruição e de nunca mais ver um
muro cinza na janela, e não reprimem os pensamentos hoje porque hoje não
reprimem nada. Não queriam dizer nada porque palavras são só palavras, mas se
quisessem, perguntar-se-iam – porque o relógio rodou tantas vezes que a verdade
se perdeu – se foram eles os mesmos que projetaram o muro, que desenharam o
muro, que o ergueram.
Devem
ter sido. Foram loucos esses sonhos de muros quebrados e lençóis arruinados.
Ao
acordar, tinham nas narinas um cheiro de destruição, cheiro que por intermédio
do concreto, do cimento, se assemelha e se confunde tanto ao cheiro da
construção – em que nenhum dos dois é bom, mas penetram o pulmão. Eles tinham o
cheiro e tinham o plano, criado desvozeadamente em meio ao tom confessional do
estranho. Levantaram-se como em um ritual, pegaram as picaretas de debaixo da
cama, pularam a janela. Na destruição do concreto, um desejo de abstrato, e que
tudo passasse de estranho à qualidade de outra coisa que não poderia ser o
normal e conhecido – porque o normal viraria o estranho sempre de novo e de
novo, como os mortos que retornam todo ano às suas casas – mas teria que virar
uma outra coisa. Não o avesso do estranho, mas seu produto, um origami. Uma
nuvem de poeira e finalmente um riso e uma exclamação em meio a destruição do
concreto, vocês devem estar loucos.
Devem.
Deviam ter sido loucos os sonhos por trás dos muros. Voltando à cama,
enxergavam enfim a floresta. Era verde, viva e cheia de bruxas.
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