segunda-feira, 29 de maio de 2017

Esquecimento

    As palavras não avançaram aos ouvidos de forma encadeada. Não há tradução de cada pedaço da frase, mas o conjunto se sobressai. Não é preciso mais que dois segundos para dizê-lo. Sendo só três palavras – e palavras curtas, monossílabas e dissílabas – poderiam ter sido esquecidas por uma interferência no telefonema ou abafadas por uma tosse. Mas, da garganta de onde saíram, conseguiram ultrapassar os quilômetros de distância e vibrar no rosto daquela que tossiu e respondeu eu também. Muitos sermões de horas já foram esquecidos completamente, é possível ler um livro inteiro e depois não se lembrar de nenhum pedaço, mas três palavras às vezes duram anos. É sempre possível voltar a elas algum dia por vontade ou descuido ou masoquismo. Ela volta às vezes. Ela se pergunta se existiram de fato.
    Aquela foi a única vez – mas foi o aval para que ela dissesse mais vezes eu também, mais vezes não muitas. Ele nunca mais disse. Ele nunca disse pessoalmente. Mas ela acreditava no olho – ele tinha esse olho irônico, áspero que ela tanto gostava principalmente por senti-lo tão pouco áspero quando havia esse estado de mornidão entre alguns beijos. Era como os pregos reunidos a formar uma cadeira onde se sentasse, o ronronar de um tigre que não se quisesse domar. Ele olhava com aquele olho quente e ela sabia que, mesmo que ele não mais dissesse, estava ali. Não reparou desde quando sabia disso, embora fosse muito antes da ligação. Ela sabia, simplesmente. E por mais que a voz dele não expressasse nenhuma doçura, pelo corpo ela sabia, pelo olho. E a confirmação não acrescentou mais certeza, mas deu-lhe a possibilidade de responder que sim, ela também. Deu a possibilidade de dizer mais vezes sem sentir perder sua dignidade, sem se atirar sozinha. Mesmo que ele não repetisse, ele havia dado o primeiro tiro.
    Ela tinha certeza em tudo dele. Sabia que era brutalmente honesto, beirando a insensibilidade. Sabia que era complexo e em verdade incompreensível. Se se permitiu criar certezas a respeito dele foi por hábito, erro de cálculo ou amor. Quando ele terminou, ela não pôde ver o olho. Era por mensagens – sucintas, controladas. Não sabia se o áspero estaria condensado em algo quente, se ainda seria possível sentar nos pregos – imaginava os olhos de gelo, quase malignos. Ela perdeu algumas certezas, admitiu as quedas e teve ódio. Abandonou o jogo por minutos, esqueceu a regra dos tiros e cobrou-lhe o amor. Ele pediu calma. Disse que nunca houve amor. Um gosto, quem sabe. Ela cobrou o esquecimento, engoliu qualquer soberba, mencionou o telefone e as palavras que houveram dentro dele meses passados. Ele nem lembrava, disse, ele nem amava, disse. Ele estava fora dela. Era hora de encerrarem-se certezas e frases longas ou curtas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário