segunda-feira, 6 de maio de 2019

De novo

Retomo esse bloco feio e sem capa para ver se, de alguma maneira, consigo me retomar. Toda volta à escrita volve aos primeiros passos. Me equilibro com dificuldade, com as duas mãos apoiadas no sofá, e salivo mais do que digo. Em todo retorno eu nasço, mas nunca aprendo a nascer. Todo fim ecoa como se fosse mesmo o fim, e para cada morte visto o sudário, me dispo na despedida mais primitiva. E outro dia estou aqui, com vestes que são mais corpo que o corpo enquanto arrasto minhas pernas muito pouco maleáveis pelo chão. Os primeiros passos foram molengos, disformes. Encaro as pegadas hesitantes, cobertas do barro que nem vi. Um dia cheiraram a talco, antes de alguma das mortes. Antes era diferente também o que saía de minha boca. Mas essa linguagem babada, do gosto doce de morangos quase podres, só não aprendeu mais sílabas porque não quis balbuciar. Por entre os lábios também se explode de tempos em tempos uma tosse, molhada, como se escalasse um visgo no peito. Então tusso sobre o bloco, mas isso não gera escrita, não se articula. A tosse é a fuga do processo; é o que sobra depois que visto a mortalha por tudo que não for a escrita. Eu sei que só posso me matar por escrito. Qualquer outro modo doeria menos.

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