sexta-feira, 10 de maio de 2019

Cacos sob o líquido


Na casa da praia, a vó dorme, todos os cômodos estão no escuro e a única luz presente vem da televisão. A televisão é pouco nítida e só pega um canal. Assisto, com as duas pernas dobradas sob a poltrona dura, e me encanta na tela o olho graúdo da cantora. No escuro, como se todo o foco possível estivesse em si, parece ainda maior. Olho graúdo, boca da textura do sofá, gestos ousados e tristes. Tenho consciência de que ela não é a original, que morreu faz tempo, mas os episódios da série a revivem. Assisto como se fosse realmente ela, e como se agora fosse aquele tempo, ou melhor, assisto quase como se eu fosse ela e aquele fosse o meu tempo. E devaneio, com meus olhos absorvidos em seu rosto. Ela canta, atriz-personagem, bebe e canta, e eu me entristeço como se também tivesse olhos grandes. E aperto meus braços de tanto que me seduz esse exagero, entristecer-se até beirar o ódio, ser viva a ponto de ter calores, de ser insuportável, e então fazer algo bonito, e tudo está justificado. Ela canta que o mundo caiu, e quase choro porque gosto, e porque no fundo chorar é iniciação a acostumar o corpo. Sozinha no sofá da sala da casa da praia, a vó roncando no quarto, tenho 14 anos e é como se não fosse fácil. Invento um peso, que não deixa de ser real. Meu mundo também cai e eu nem sei por quê. Isso eu não inventei. Mas talvez aquela mulher também não saiba. Talvez ninguém. Fazer algo bonito e compensar que a cabeça não dê sossego. Eu só preciso, antes disso, de um copo gordo repleto de líquido castanho, e uma trilha sonora como essa, e eu vou xingar tanta gente com a minha personalidade que vai ser forte e não esse xarope derramado, vou xingar tantas pessoas, ter amores, nunca amigos, ser sozinha, pegar o copo e jogar na parede com força, e então criar algo bonito. O líquido vai se espalhar pelos cacos no chão e fazê-los brilhar mais. Essa parte nunca aparece nas séries, somente o estilhaçar. Mas eu imagino e acho lindo.

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