sábado, 5 de janeiro de 2019

Sofás

I

A família toma espumante em taças finíssimas e defende a pátria. A família se delicia na frente da tv. As mulheres da família usam brincos brilhantes nas orelhas e precisam disfarçar as varizes, os homens da família têm o peito peludo e as línguas cheias de cerveja. A família se instala nos sofás da sala de estar e comete alguns crimes verbais entre os dentes sujos de docinho. A família usa guardanapo para limpar os cantos das bocas. A família cruza as pernas se for mulher e não cruza se for homem.


II


Olho fixamente a televisão durante o hino. Quero vivenciar com febre essa derrota, meter o dedo dentro da minha própria ferida. Tudo soa trágico sob a letra parnasiana e o canto empolado e público. Quase sinto uma iminência, como se a qualquer momento fosse ruir uma bomba vinda do subsolo ou o sol fosse explodir em mil cacos amarronzados, como de uma garrafa velha de cerveja. Só que nada ocorre e é falsa minha iminência. O hino salta como um cavalo sob o meu ódio e se encaminha para o final, na boca azeda dos homens de gravata. Ninguém vomita ou dá gargalhada. Nada anormal nem nesse universo outro nem no espaço da televisão, nossa heterotopia. Na sala, apenas comentários, curtas risadas, todos os rostos com os maxilares encaixados normalmente, sem trincagens. Somente eu, rasa em meu assento, com as gengivas aparafusadas na tela e os olhos fixos, afinando, afinando, como se prestes ao desmaio, e ainda assim carregando uma fúria indecente. Logo ele discursa, e nós continuaremos nossa tarde de cachorros e espumante como se não fossemos todos culpados.


III


A família gosta de roupas brancas e sofás fofos como esses. Eu tenho nojo. A família gosta de mim e me olha calorosa vez ou outra. Eu tenho culpa do nojo. A família contempla com orgulho o dinossáurico que puseram na televisão. Eu tenho nojo outra vez. Vou tendo nojos indiscretos a tarde inteira.  Olho para minhas unhas, nos fiapos da carne. Ouço porque não posso arrancar de mim os sons como quem arranca um dente prendendo-o ao trinque da porta. Não me orgulho de nada, o que é uma forma de sanidade. E tenho medo de uma porção de coisas, o que também é sanidade. E assim meio maluca, furando com os olhos o lcd, acho ora sim ora não que estou lúcida. É sempre um perigo que se corre. A família se sabe lúcida. Racional. A família usa óculos que troca às vezes e crê ter resolvido o problema. A família sabe que vai pro céu. A família escolheu a única opção possível, verde e amarela e azul do céu dos bons. Tenho novo nojo e o sol não explodiu. Prefiro a luminosidade feérica do meu inferno.


Green exploding sun (1970) - Allen David

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