sábado, 22 de dezembro de 2018

Conversa infinita

Tivemos a ideia de uma conversa infinita, para que nós também fossemos. As palavras restariam e, cobertos por elas, poderíamos enfim respirar aliviados: não nos chegou a morte. Pretendemos encarar qualquer vazio com nossos sons encadeados. Mesmo que todo o resto se destruísse, nós restaríamos na fala. Salvação do inferno de não ser mais.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita, pois todas as outras em volta eram limitadas, não valiam a comida que as sustentava, não nos valeriam nada. Perto de nós, as pessoas cheias de sílabas no prato sílabas com sal sílabas mergulhadas em chá sílabas amargas, mas a nossa conversa não. Porque todas as outras eram rasas e versavam sobre tudo que não era aquilo que a nossa versava, não falavam de universo e do caos, não falavam como nós falamos enquanto nos deitamos sob o teto de um quarto por cima do qual há um céu anoitecido que não paramos para olhar, mas que guia nossa forma mesma de dizer tudo que dizemos, de falar e de fazer silêncio na hora certa para o silêncio.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita como um beijo, porque havia infinitos dentro de nós mesmos, e vontade de potência. Pretendemos ser mais do que somos e explodir todos os tetos, inclusive o nosso, com toda a força no verbo, desestabilizando o pouco que estava estável.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita porque tua voz nascia na minha e a minha na tua e de parto em parto nos afastávamos dos olás e tchaus do dia-a-dia.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita para fingir que podemos escapar do dia-a-dia e nos universalizar. Mas não escapamos da miudeza do que somos, quando nos vestimos ou tomamos banho, mesmo que cheios de sonhos, esse nosso cheiro de humanos, de quem não escapa mesmo que se cante o universo, porque por mais que nos deitamos num colchão embaixo de um teto embaixo das estrelas, por mais que façamos textos, ou dialogamos na praça, na mesa com pizza, num sushi de músicas tristes, por mais que a gente tente em todos todos todos os espaços, por mais que falemos em ursos no cosmos e dinossauros e a teoria do caos e o destino e os cachorros e drogas e rap e comidas favoritas e o potencial humano para a destruição e nossas loucuras e essa tragédia e os problemas do corpo e essa vontade de ser mais do que isso aqui e essa intensidade que nos consome tão rápido quanto esses pulmões cheios de fumaça, por mais que a gente fale e fale, nós não escapamos.
Tivemos a ideia de uma conversa infinita porque ignoramos que a mais infinita das conversas dura minutos, horas, no máximo uma semana porque diz tudo o que podia dizer e a imensidão era o que confeccionava cada palavra enquanto nos banhávamos já meio imensuráveis e transbordávamos nossas pretensões de tempo-espaço, porque o infinito, o real infinito, não dura nem um pouco, o que dura é a rotina, e todo infinito acaba eventualmente.
Nós inventamos uma conversa infinita porque é impossível haver uma conversa infinita.

Over the town, 1918 - Marc Chagall
Over the town (1918) - Marc Chagall

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