quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Porta-retratos nas estantes. Ela espana a velhice da casa, nos dias em que não tem medo do pó que há em cada coisa. Ela tira o poeira uma vez a cada mês. No resto dos dias, somente limpa o visível e superficial: o chão, onde os sapatos sujos tornam a sujeira em evidência; as louças, parecidas com o humano em seus banhos diários de renovação, afinal, é pecado receber comida nova em louça que ainda guarde as carcaças de outras. As roupas também precisam de cuidados, para não virarem viveiro de manchas e cheiros do corpo. Mas aquilo que não é da ordem dos rituais necessário das coisas, e aquilo que não é útil para apagar as evidências das pegadas e dos derramamentos, o que é sutil e se acumula aos poucos, os olhos dela geralmente não se preocupam em atentar. A não ser quando chega em dias como esse, em que pode enxergar, cheirar, quase sentir o gosto do pó. Não percebê-los tornaria viver um pouco mais fácil. Mas eles se acumulam, em cima das porcelanas, na madeira das estantes, até mesmo na tela da tv, onde quase cremos às vezes que o movimento dos filmes de ação e jogos de futebol não deixam com que se fixem os restos. Os pós estão onde menos se espera, inclusive nela própria. É por isso que em alguns meses ela tira o dia para espanar o pó das coisas e reclamar de toda essa sedimentação. A poeira é um atestado do tempo que se assenta sobre nós. É preciso tirar os resíduos do tempo com um pano molhado. Assim, quem sabe deixe de sentir na respiração o velho gosto de guardado.

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